13 julho 2014

Sole Cis mo, monólogos performativos

Un écrivain qui écrit : “Je suis seul” ou comme Rimbaud : “Je suis réellement d’outre-tombe” peut se juger assez comique. Il est comique de prendre conscience de sa solitude en s’adressant à un lecteur et par des moyens qui empêchent l’homme d’être seul. Le mot seul est aussi général que le mot pain. Dès qu’on le prononce, on se rend présent tout ce qu’il exclut.

A writer who writes, ''I am alone''... can be considered rather comical. It is comical for a man to recognize his solitude by addressing a reader and by using methods that prevent the individual from being alone. The word alone is just as general as the word bread. To pronounce it is to summon to oneself the presence of everything the word excludes.” Maurice Blanchot.

 

 “A writer who writes, ''I am alone''. Que lindo começo. Que promessa. Que elegância concisa. Que escolha perfeita de palavras. Que musicalidade. A aliteração, seguida da frase I'm alone. Levantamos vôo. 

E a ironia de estar a fazer comentários, sozinho, um atrás do outro, sobre a beleza de uma frase destas.
 

Não há desolação maior do que esta.
· 

Nem maior prazer.
 
 Sinto-me a inaugurar um género literário.
 Um género que associa comentarios do autor sobre a impossibilidade de estar sozinho, no preciso momento em que se profere a solidão,









 é belíssima, a frase, o modo como é enunciado o paradoxo da solidão impossível









 
tal e qual









 


e os comentários onde ninguém interfere, o comentador sózinho, desenvolvendo uma ideia de solidão, momento a momento repetida, pública. Qualquer pessoa pode entrar e muita gente pode estar a ler. Mas ninguém o faz, como se o silêncio escondesse um pudor que suspendesse a opinião. Como se houvesse reserva. E assim, a solidão do que escreve se pudesse afirmar, afinal possível









 
Talvez exista algum pudor em interferir no processo criativo









 Ou o silêncio reflicta apenas curiosidade 




 Pudor e curiosidade. 
As regras da intervenção no espaço público
,
a torrente de comments, um após o outro, indicia discursividade




 como numa palestrar, em que o autor articula ideias, uma frase a seguir à outra 




Ora, não se interrompe quem está a discursar. Quem discursa está num lugar de poder.


A audiência invisível é unilateralmente remetida para esse espaço de ouvinte /leitor(a), O único que lhe é de facto permitido









 



O nome deste género literário deve apontar para a solidão e a sua impossibilidade na literatura Mas não me interessa agora o leitor (cómico) . L’écrivain comique, celui qui énonce à ses lecteurs « je suis seul », « je suis pain », est privé de sa solitude comme de son pain. (Ayelet Lilti) 




O nome deste género literário deve tb conter alusão à forma através da qual se realiza: os comments do FB




 e ao facto de nele de afirmar o escritor cómico, (assez comique, rather comical) que se torna cómico ao proferir a palavra “só” onde entre a palavra cis- do mesmo lado - referente ao isomerismo cis/trans, do mesmo lado só possível por haver o outro lado, do mesmo lado através do plano onde se constrói e reflete o outro lado. que tal Solo Cis mo ? que remete para Solipsismo, Ou por extenso, SoloCismo, monólogos performativos

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Dallow and I

Há certamente várias maneiras interessantes de contar isto. Mas não consigo evitar a referência à cómoda rústica. Devia começar por falar da Dallow e dizer que, quando tudo começou, era uma rapariga de Torres Novas que tinha vindo estudar arquitetura para Lisboa. Eu conhecera-a num restaurante infame do Paço dos Negros onde depois teria tantas ideias literárias. Para abreviar, ela sabia quem era Odette de Crécy, Swann, o sabor das madalenas e como se pode ouvir, toda a vida, um choro que começou na infância. E fazia aquilo que eu teria gostado de fazer, se os constrangimentos da vida não me tivessem obrigado desde muito cedo a ganhar dinheiro. Além de tudo o mais: senti, quando ela chegou, nesse primeiro momento, uma sensação desconhecida. Era como se ela, cujo nome nem fixara, fosse nova e antiga para mim. Como se o seu rosto fosse tão incerto ou mutável que eu tivesse de o fixar continuamente, e cada alteração fisionómica fosse, de entre todas as inúmeras possibilidades, a mais perfeita. Mais tarde, quando se levantou, vi-lhe as sandálias e os tornozelos, e tive esse estremecimento tão raro em que não sabemos se foi o mundo que parou ou se alguma coisa desconhecida acordou em nós. Ontem vi o filme de vampiros de Jim Jarmusch. Não gostei excessivamente. Mas há algo de comovente nessa linhagem de seres que não morrem, nem fitam a luz do dia e que transportam consigo a memória dos mortais. E é sobretudo a forma como se reconhecem, ao pressentir a sua irredutível diferença. Tilda Swinton é obviamente um ser das trevas, com o seu corpo imaterial, translúcido, anguloso, guiando um homem exangue nas ruas estreitas da Medina de Tânger. Hoje há palavras vulgares para descrever o que eu senti por Dallow naquele restaurante. Algumas pessoas chamam-lhe química. E dizem mesmo: há química entre eles. Mas pode haver química só num?, pergunto eu, agora. Na altura desconhecia, mais do que actualmente, a neurofisiologia da emoção amorosa. Mas porque acreditamos que os centros nervosos se acendem ao mesmo tempo, e são os mesmos? E os neuromediadores, os circuitos, as sinapses, a forma como isso se espalha dentro de nós e nos surpreende. Como tudo foi aprendido com os nossos pais e tutores, os padrinhos, os amigos influentes, Marcel Proust e Thomas Mann. Que infundada, e no entanto recorrente, é a pretensão de que percebemos o que o outro sente e de que, pelo menos quando estão em causa os momentos mais significativos da vida, partilhamos com alguém, genética e epigeneticamente diferente, os mesmos estados. Dependemos dessa construção, dessa crença, para conferir esse carácter raro e incomparável aos encontros felizes. E, no entanto, duvidamos incessantemente. Os amantes, quando estão em carne viva, não param de se interrogar. Exigem a confirmação reiterada, sem a qual se angustiam e amuam. A mais pequena passagem de tempo desactualiza a confissão de amor mais credível, tornando efémera e vã o que no dia anterior fora uma jura de eternidade. O desejo é impaciente e performativo, ou não seria desejo. Sem essa reiteração, qualquer silêncio ou ausência gera a maior dor e a mais lancinante incerteza. Na altura em que conheci Dallow a minha energia ia toda para a distribuição de gás e a criação de uma rede que acompanhasse os consumos domésticos que tinham disparado. E isso tinha-me aproximado de gente que até aí desconhecia, como os criativos de design e as responsáveis do marketing e da pós produção e, através desta gente, de pintores e desenhadores, fotógrafas e ilustradoras. Rosa partilhava esse mundo e, ao mesmo tempo, o grupo quase juvenil da sua Escola, composto por gente que viera de Torres e de Tomar, de Ourém e de Constança. Dallow gostou da minha casa, sobretudo do pátio das traseiras, dos jardins dos vizinhos, das laranjeiras e do cheiro do jasmim na Primavera. Gostava de fumar no pátio, e de estudar na minha sala, no meio dos livros, durante a noite. Um dia propus-lhe que ficasse. Passava a maior parte do tempo em minha casa, tinha uma chave, tomara conta de tudo durante uma semana em que tivera de me ausentar. Ela disse que ia buscar umas roupas, ao quarto que alugara, algures, fora da cidade. Quando voltou, trazia uma cómoda. Dois colegas ajudavam numa carrinha emprestada. Dois gavetões , duas gavetas e um tampo de uma pedra escura, pesada, que na altura já devia estar partida. Vinha tudo em peças separadas, os gavetões cheios de roupa, e as gavetas de pequenos objectos embrulhados em papel de jornal, aos ombros dos rapazes, e, na parte final, aos meus ombros também. Não era particularmente bonita, nem antiga, nem boa, esta cómoda. Tinha umas pernas pequenas, sem estilo, toscas. Ficava mal em todo o lado, sobretudo no canto do quarto, quase sem mobília, onde eu dormia. Foi aí que a pousámos, cuidadosamente. Aí ficou, quando se percebeu que todas as alternativas eram piores que aquela. O tempo passou. Eu continuei a viver no mesmo andar de Campo de Ourique. Mais tarde um filho meu. Depois eu, novamente. Na minha casa quase tudo mudou. Excepto a cómoda, num canto do meu quarto. Lá está ela, de vinhático, à espera que um dia Dallow a possa vir buscar.

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17 junho 2014

Gente de Dublin sem destinação




Agora que estamos em Dublin há oito dias começa a habitual confusão onomástica e fisionómica. Nas ruas mais animadas, distingo, entre a multidão, um vulto conhecido. Pode ser familiar: o meu vizinho da rua Verde Pino, um colega de curso, a secretária do ensino médico. Ou o Rui Batista. Há muitos anos que vejo o Rui Batista, eternamente jovem, com a melena asa de corvo e sorriso sarcástico, perpetuamente a caminho de um destino pouco óbvio. Ou actores e locutores, gente célebre da televisão, que consideramos íntimos, e quase nos espantamos quando se torna evidente que o reconhecimento não é recíproco. Quase sempre são mortos, os indivíduos que se cruzam comigo, nos lugares que visito. Pessoas que desapareceram, algumas há imenso tempo, e que agora se passeiam nas grandes cidades, entre as multidões, quase sempre sozinhos, ostentando um ar antigo, roupa anacrónica e penteados fora de moda, vagueiam sem destino, de olhar perdido, mas tranquilo, como os turistas sem guia. Vejo os meus amigos destinados a uma morte precoce, o Boléo, que morreu quando tínhamos quinze anos, o Fontão, de testa alta e confiança, o Néné, distribuindo a uma roda de admiradores a sua ironia desconcertante. O seis do 2ºA , o Sousa, a quem o padre de Moral incumbiu da difícil tarefa de me ir buscar para a missa de domingo. E com eles vem quase sempre a dona Beatriz, a minha professora de Português, caminhando com uma encantadora retroversão da anca. E o meu estranho professor de Francês, microgénico, e de voz profunda. Ela acreditava que eu seria grande, ele adivinhava já os defeitos que eu viria a revelar. É para aqui que vieram – penso. E faz sentido. Vejo-os de relance, meio encobertos por outros transeuntes, quase sempre afastando-se mim. Não parecem ter fome nem frio, como convém à sua condição. Não têm destinação. Mas ninguém parece ter destinação, nestas ruas de Dublin ao fim da tarde. Apenas procuram o que resta do sol, como toda a gente. Quando apresso o passo para os ver mais de perto e desfazer a confusão, desaparecem. Estando eu na esquina de Exchequer Street com St. Andrews, vejo-os subir a rua, a esta hora da tarde já ameaçada pelas sombras. Vejo como se aproximam do cruzamento onde estou, encostado à porta do Foggy Dew, e como se desvanecem quando entram num miraculoso cone de luz feérica, como tremem e se extinguem. No momento da extinção há uma fracção de segundo em que se definem com clareza. O senhor Garcia está mais magro, embora continue rotundo. O professor de Alemão, com o cachimbo vazio, avança pesadamente e é fotografado, sem que o note. A mulher que prodigiosamente o vê e fotografa, com a máquina à altura da face, nunca verá esta fotografia nem entra, por enquanto, nesta história. Se falar sobre isso, se disser à Luísa: - Olha, o Ivo. E a ouvir repetir: - Ivo, que Ivo ? E lhe responder: - O Ivo Cortesão, o meu professor de Francês no segundo ciclo. A Luísa sorri, divertida e sem surpresa: - Que engraçado, já não via o Ivo Cortesão há vinte anos, quando ficámos lado a lado no comboio, numa ida a Lisboa... E então vejo o meu pai. Entre todos os conhecidos que encontro em Dublin, ao sétimo dia, quando já decorreu tempo suficiente para sabermos de cor algumas ruas, alguns trajectos, os horários do comércio, os cais do centro da cidade, pode acontecer vê-lo. Em Dublin ou em Madrid. Em Paris. Em Milão e em Londres. Nunca o vejo em cidades mais pequenas. Nunca se aproxima. Nunca olha de frente para mim. Está quase sempre de costas, caminhando na mesma direcção, sem pressa. Acontece que aqueles que se interpõem entre o meu pai e nós, caminhando devagar, como fazem os turistas sem programa, o ocultam totalmente, ou se viram para trás, sentindo o peso do nosso olhar. O meu pai nunca se volta. O meu pai com a gabardina branca. O meu pai com um casaco castanho. A sua cabeça brilhante. As grandes orelhas. O modo que ele tinha de atirar ligeiramente os pés para a frente, ao andar. O nariz quebrado de boxeur. Que não vejo. Pois não se vira. Nunca se vira.

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Alfarelos, excerto de um poema





- A minha vida é extraordinária. Tenho pena de não vos poder contar tudo. - Eu! Eu! Eu! - repetiu a Teresinha, censurando o meu egoísmo. Mas temos de gostar de nós, não é? É o que a Teresinha costuma dizer. - Gostar de si própria é um pressuposto para a felicidade - é assim que ela diz. Ou ainda: - Quem gostará de nós, se não nos soubermos apreciar? Mas o lema da Teresinha não se aplica a toda a gente. Foi por isso que vim de comboio para os anos dela. Por isso e porque gosto de andar de comboio. Ao domingo há sempre um grupo de ferroviários a ocupar os lugares centrais da carruagem salão. São homens de meia idade, falam o tempo todo, virados uns para os outros. Uns gostam de falar e outros gostam de ouvir. Ao meu lado vai um homem estranho. Um coronel reformado, é o que penso. Por causa da filha, sobretudo. A filha de um coronel reformado, com o cabelo esticado e um casaco clássico que despe, com inesperada sensualidade, quando repara que, contra a minha vontade, a olho com insistência. Tem uma blusa justa que, ao rodar os ombros, lhe desenha um sutiã antiquado. Ou serei eu que sou antiquado em sutiãs, sobretudo quando se trata de filhas de coronéis. Uma das escritoras que leio, declarou há pouco que detesta a palavra blusa. Eu gosto. Tem duas vogais separadas por uma consoante, deslizando entre elas como seda sobre pele lisa. E um início que se solta como o gás do champagne e está na palavra blue e na palavra éblouissant, imitando o som que liberta ao ser despida. Já o mesmo não se pode dizer da palavra sutiã, o grafismo absurdo adoptado para a palavra francesa que democratizou o corpete ou porta-seios. Sem possibilidade de continuar a examinar a filha, tento perceber melhor o pai. Cabelo cortado à escovinha, calças justas, meia bota de montanha com cromados brilhantes. Penso neste homem a escolher calças e botas e como esse momento é revelador para um caixeiro arguto. O coronel tem uma fome devastadora e come uma maçã como só pensava que uma mulher o soubesse fazer. Uma mulher a recrear o pecado original, uma das milhares de Evas sempre prontas a exibir um excesso de carnes roliças, um rubor indisfarçável, histaminérgico. O homem tem óculos de sol e um MP3, pousados sobre a mesa. De vez em quando coloca um auricular, apenas um. Conserva-o alguns segundos, com uma mão suspensa perto da face, e depois retira-o como se queimasse ou a música o decepcionasse profundamente. Não sei o que ouve este homem, que tipo de música selecciona, nem porque esta lhe é, subitamente, tão repulsiva. Eu ouço Neil Hannon dos The Divine Comedy, cuja última gravação foi há 4 anos, e sou periodicamente atravessado pela questão recorrente que formulo assim: cheguei tarde às coisas interessantes da vida ou tenho ainda tempo? E serão estas? Encanto-me com a doce e genuína simplicidade de Have you ever been in love. Mas The Lost Art of Conversation ainda não tem a letra disponível no Lyrics.com e não posso impedir-me de pensar que é nessa canção que está, em código, mas fácil de decifrar, como sempre sucede com as canções da rádio, a verdade elementar das nossas comuns existências. Há momentos assim nas viagens e há momentos assim fora das viagens, aos domingos de manhã, quando quase todos dormem e a escassez de transeuntes nas ruas ou a abundância de lugares vagos no Alfa criam a ilusão de estarmos a viver um tempo suplementar, que ganhámos sem merecer, mas que, apesar disso é precioso e configura, de certa forma, a nossa vantagem. Paramos agora em Alfarelos. Escrevo uma mensagem cujo texto é : Alfarelos. E o que quero dizer, realmente, é Alfarelos, princípio de um poema como o Álvaro de Campos escreveu Excerto de duas Odes e rapidamente, em menos de meio século, se tornou natural para tantos leitores que isso significava Fim de duas Odes. Alfarelos, escrevo na mensagem para a Teresinha, esquecido de que ela não partilha as minhas referencias poéticas, a nouvelle chanson que ultimamente ouço obsessivamente, os escritores discretos em que me especializei e para os quais escrever Alfarelos é todo um programa, e acrescentar palavras a Alfarelos uma tarefa inglória e votada ao fracasso, que só pode ameaçar a perfeição desta mensagem lacónica que a Teresinha deve estar agora a receber Alfarelos sem perceber se viajo para ela ou para longe dela.

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12 janeiro 2014

Os patriotas





Diane Arbus chamou-lhes Patriots. E eles trazem na lapela  o distintivo do Thanksgiving ou do 4th july e nas mão o pavilhão das estrelas e das riscas.  Não parecem muito dotados, mas a distribuição dos dons é provavelmente semelhante entre os patriotas e os não patriotas.  Devia dizer “menos patriotas”. A ideia de patriotismo é tão forte, tão consensual, que é difícil encontrar alguém que dela se exclua.  Os marxistas antigos eram internacionalistas pois, para eles,  o colectivo que transportava a superioridade moral era a classe operária. Mas o PCP, mesmo nos tempos da iluminação soviética, sempre teve o cuidado, algumas vezes obsessivo, de reclamar as suas propostas como patrióticas.
O nacionalismo é a ideologia que declara a nação como a unidade politica “natural”.  ( Já estou a ficar farto de tantas aspas, mas isto é matéria para pinças) Historicamente floresceu com o iluminismo e o romantismo, paradoxalmente contra a anexação das guerras napoleónicas e depois nos territórios do Império austro-húngaro reconstruído.  Deu origem aos estados-nação com a bandeira , o hino, a língua nacional, o panteão, o dia da nação, as Ordens honoríficas e mais tarde a selecção nacional de futebol. No século XX, a ideologia nacionalista foi aproveitada pelas ditaduras de extermínio. Esteve na origem das guerras mais letais da história e permitiu o recrutamento dos jovens para uma morte colectiva e programada.
Na Europa actual, aparentemente sem fronteiras, o Estado-nação, com homogeneidade de história, tradições culturais, língua, não existe. Mas os demagogos e os políticos ambiciosos estão sempre a aproveitar uma vulgata simplificada da” história da nação” para unificar os interesses diferentes das populações, enquanto prosseguem, silenciosos e opacos, politicas económicas transnacionais.
O patriotismo e o nacionalismo fazem continuamente apelo a ideias irracionais e contêm subjacente uma ideia falsa : a de que existe, na entidade politica nacional apenas uma história, uma cultura, uma religião, uma língua, uma raça. E atrás dessa ideia falsa, uma ideia mortífera: a nossa é a melhor.
Danilo Pabe, um rapaz que cresceu na Jugoslávia em decomposição sangrenta e se exilou em Inglaterra, foi recebido como um respeitável foreigner e hoje, 20 anos depois, é um fucking Eastern European immigrant, o que mostra a persistência das ideias xenófobas e racistas, mesmo quando cobertas pelo banho de chocolate da “cultura da tolerância”.
Eu não sou patriota nem nacionalista nem faço distinções subtis, embora saiba que existam. Interessa-me mais insistir na multiplicidade de culturas, línguas, referencias culturais e históricas, religiões, existentes no mesmo território. Como de formas de relacionamento amoroso e de famílias, mas isso, como diria Danilo Pabe, é outra história.
Se alguma vez me virem trair esta declaração, fotografem, por favor, ponham-me na mão uma bandeira e debaixo da foto uma palavra simples, que de algum modo lembre a Diane Arbus.



La hija del Este, Clara Usón, Seix Barral  2012
(tradução portuguesa anunciada para breve)

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15 dezembro 2013

Adèle





Quero falar deste filme tal como o vi, sem ter lido nada sobre ele. Talvez injustamente, considero a crítica cinematográfica quase toda preconceituosa, capelista e contaminada pelo estrelato: o sistema que reduz a análise de um filme a meia dúzia de linhas para os preguiçosos e umas estrelas para quem está com pressa. Desta vez, não li nada. Nem sequer as entrevistas a Julie Maroh, autora da BD que deu origem ao filme, os relatos dos acontecimentos que envolveram a rodagem e foram revelados, ruidosamente, antes da sua exibição e apoteose, nomeadamente com a atribuição do galardão máximo do Festival de Cannes. Ignorava assim que “o encontro luminoso” do filme, na passadeira de uma praça de Lille, fora filmado durante horas e repetido até à exaustão. A celebrada maratona de sexo obrigou a 700 takes. As duas actrizes estavam rodeadas por três câmaras, holofotes e pelos técnicos, que mais tarde e através dos seus sindicatos, denunciaram o não pagamento de horas extraordinárias e o incumprimento de preceitos contratuais. As próprias actrizes deram voz a algum descontentamento: o realizador, Abdellatif Kechiche, interrompia a cena sempre que “sentia não haver desejo.” Numa entrevista recente, Kechiche confirmou: não tendo outro guião para aquela cena, além da captura do desejo, ele cortava, sempre que, no seu julgamento, este decaía.
Vi assim o filme com aquela mesma inocência que Kechiche reclamou para o visionamento da sua obra.

O primeiro impacto foi o encontro com o rosto de Adèle. Notavelmente parecido com o de Marie, de Au Hasard Balthazar, o filme quase esquecido de Robert Bresson.  Marie, aliás, Anne Wiazemsky, a actriz de Bresson, teve um singular trajecto. Podemos segui-lo através da publicação das memórias, a mais recente das quais editada pela Gallimard com o título Une Année Studieuse. Wiazemsky filmou Teorema para Pasolini e La Chinoise para Jean-Luc Godard, entre outros. Neste livro mais recente conta como escreveu uma carta a Godard, então já uma figura emblemática da “nouvelle vague”, e como desse encontro resultou um casamento de doze anos. Neta de François Mauriac e bisneta de um príncipe russo, tinha 18 anos quando rodou com Bresson a peregrinação do burro Balthazar. A mesma idade que Adèle celebra no filme. Adèle Exarchopoulos, a Adèle de Kechiche.

O mesmo rosto oval, o mesmo olhar perplexo, profundo, melancólico. O mesmo lábio inferior polposo que Kechiche filma, babando-se nas fases profundas do sono. O método Bresson parece repetir-se com Kechiche, embora a repetição esgotante seja para o realizador franco-tunisino uma tentativa de captura da “naturalidade” e para Bresson a eliminação de qualquer veleidade interpretativa, um método para que os actores se esqueçam de que o são e assim acedam à condição de “modelos” (modèles).
Adèle Exarchopoulos e Anne Wiazemsky, separadas por 47 anos. A Vida de Adèle e Au Hasard Balthasard, separadas por 47 anos. Talvez se ignorem, como Kechiche ignora Bresson. Anne saiu do filme de Bresson no quase anonimato e Adèle teve honras de estrelato nas passadeiras de Cannes. E no entanto, o cinema acendeu e revelou duas histórias semelhantes.
A história de Adèle é a do início da sua vida de adulta, desde o fim da escolaridade no Liceu Pasteur à vida profissional como educadora de infância. E, ao mesmo tempo, a história do encontro com Emma, uma aluna do 4º ano de Belas Artes, detonador do seu desejo lésbico. 
A relação entre as duas é desigual. Adèle é mais nova, , come esparguete à bolonhesa e não tinge os cabelos de “azul, a cor mais quente”. Adèle cozinha, acolhe, serve os convidados, uma e outra vez, lava a louça, esforça-se e anula-se. O seu mundo, a sua vida profissional, aquilo que pensa é secundarizado, interessando apenas a um rapaz que faz de duplo em filmes americanos, ou ao colega educador, profissões da base da pirâmide de consideração pequeno-burguesa. As conversas das belas-artes são, no entanto, muito pouco elaboradas, denotando uma falta grave de assessoria: generalidades sobre Egon Schiele e Gustav Klimt e, mais tarde, sobre a obra de arte como mercadoria. Os desenhos de Emma são de um mau gosto arrepiante.

Adèle acaba por ser expulsa da casa comum, sem piedade, numa cena de crueldade doméstica onde nem sequer falta alguma violência e que, nesse momento, surge como epílogo de um percurso sacrificial.
O que fica deste filme é Adèle, “un modèle” de Kechiche, uma criação que se emancipa do criador. Vamos esquecer a
cena de sexo em que a cama é filmada como um ringue com duas atletas de WWE, e lembremo-nos dos beijos de Adèle. São uma coisa nunca vista. Envergonho-me ao vê-los, com pena e desgosto de mim mesmo. Procuro as palavras certas: sofreguidão, voracidade, avidez. As palavras geralmente usadas para  descrever este arrebatamento são tão desajustadas que soam ridículas, quando as escrevo ou digo em surdina. Já se filmou a ternura e o desespero, a inocência e a cupidez, já se filmaram beijos elípticos e explícitos, beijos dados por duplos, com ou sem latex, beijos cúmplices e falsos, apressados e roubados. Estes são beijos fora da história. Animais, hiantes, gemidos, famintos, feridos, emblemas de um ser que se vira do avesso e fica só mucosas, saliva e muco, lágrimas e suspiros. Era preciso vir uma rapariga das classes populares, que não conhecesse outro nome de pintor senão Picasso, e tivesse aprendido a gritar e a dançar nas grandes manifestações estudantis a favor do ensino público, para que se beijasse com este fervor, como se o beijo e os seres beijantes estivessem agora a ser inventados.
A melhor cena do filme é, perto do fim, a do encontro no café. Mas uma já não ama (se alguma vez foi capaz de amar). E é então que, no meio do ranho e do desejo reprimido, Adèle revela toda a sua superioridade face a Emma, conformista e resignada à insatisfação sexual, como habitualmente sucede aos predadores.

Anne Wiazemsky,  Une Année Studieuse, Gallimard, 2012
Au Hasard Balthazar, Robert Bresson, 1966
La Vie d’Adèle, Abdellatif Kechiche , 2013

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08 dezembro 2013

Mértola, vila morena




Mértola Vila Morena

Resumo o noticiado sobre o caso: uma professora primária acusada de ter gravado edivulgado vídeos pornográficos, utilizando material escolar e tendo por cenário a sala de aula. Um jornal deu assim a notícia:
“Os pais dos alunos da escola de Penilhos, em Mértola, onde uma professora primária terá alegadamente realizados filmes pornográficos, ficaram em choque depois de terem visualizado, na passada semana, uma das gravações que circulam em sitespornográficos onde a docente exibe o corpo em plena sala de aula. No vídeo, ao qual o jornal teve acesso, a docente, de 42 anos, usa materiais pedagógicos para acariciar as partes íntimas.
Outro jornalista registou a reacção de uma mãe: A informação de que a professora estaria envolvida em filmes pornográficos, gravados no interior de uma sala de aula do agrupamento de escolas de Mértola, não foi totalmente nova para os pais. A mãe de um dos alunos da docente explicou ao i que ao longo dos três anos em que a professora leccionou na escola, por diversas vezes a criança relatou ter assistido às filmagens, que ocorriam quando os alunos estariam no intervalo das aulas. Não queria acreditar que era verdade quando o meu filho dizia que espreitava pela janela e via o peito da professora, diz agora a encarregada de educação, que prefere manter o anonimato. Repreendi o meu filho muitas vezes, acrescenta.

O conjunto destas informações é interessante. A terminologia utilizada é, só por si, relevante e constitui material de estudo multidisciplinar. De uma primeira incursão analítica, emergem seis possíveis áreas para aprofundamento futuro, eventualmente passível de financiamento externo.
1. Uma professora primária. A referência ao grau de ensino não é despida de intenção. Consultando aleatoriamente três sites da especialidade, pode constatar-se que as professoras primárias competem com as enfermeiras, os canalizadores, os personaltrainers e as madrastas jovens na lista das personagens favoritas das gravações de parcos diálogos e duvidosa densidade dramática. A professora primária, a personagem feminina que sucede à mãe na história de vida das crianças, deve constituir uma poderosa imagem erótica para os adultos infantilizados que este tipo de pornografia convoca.
2. A sequência dos acontecimentos: os vídeos circulam, os pais visionam, a professora é reconhecida, entram em choque, queixam-se ao Ministério, os jornais noticiam.Quase se pode ver o ambiente de planície desertificada em que isto sucede, como numlivro de Dino Buzzati: o calor, o vento suão, o rumor dos cafés, a primeira mulher-mãe escandalizada, que se sente investida pela responsabilidade social de denunciar.
3. A reacção da mãe: ao longo de três anos repreendeu o filho que espreitava. Não queria acreditar. De facto, é difícil acreditar. O rapazinho de 6 anos até dezembro, aluno do 1º ano, espreita a professora que acaba de chegar a Mértola. Vê-lhe o peito. Conta à mãe. É repreendido. Novo ano escolar e ele, já no  ano, reincide. Terceiro ano. Sucesso escolar. Mas o rapaz, agora com 8 anos, não aprende que espreitar é feio. Volta a espreitar. E como não cegou, fulminado pelo peito revelado da professora,volta a contar. E como a mãe não queria acreditar, nem viu para crer (ainda, passados 3 anos), volta a repreender.
4. A idade da professora. Não é uma jovem. É uma mulher de 42 anos, a mesma geração das mães de MértolaTemos espectáculo para todas as idades. Dos edipianos mal resolvidos aos velhinhos libidinosos.
5. O cenário: em plena sala de aula. Plena. Não um recanto da sala. Uma carteira.Junto à porta. Frente ao quadro. Não. Em plena sala de aula da Escola Primária do CentenárioDesde Salazar, o espaço sagrado da aprendizagem. Depois dos espaços de oração e do segundo lanço das escadas do Parlamento, não se conhece um espaço público tão sagrado. O cruxifixo, Cavaco Silva e o olhar do aluno que raspou o vidro da janela e há três anos espreita, repreendido pela mãe incrédula. Em Tristana, do último Buñuel, outro jovem, este mudo, nunca mais esquecerá.
6. Uso de materiais pedagógicosSugestão simultaneamente previsível, imaginativa e sempre sacrílega: foi profanado o pressuposto da pedagogia única.
O caso da professora de Mértola é exemplar e talvez nenhum outro, nos últimos anos, tenha sido tão sugestivo e desafiante. De facto, a mulher de Mértola gravou, num tempo não lectivo, com intimidade, um produto artístico que depois divulgou. O facto de o ter feito no espaço singular da sala de aula decorre do conteúdo propalado. A sexualidade é um mistério, como disse Elisabeth Badinter. E o objecto fílmico que esta mulher produziu só fazia provavelmente sentido no contexto em que foi realizado, naquele espaço e com a duração do recreio, a iminência da descoberta e do escândalo.
A última notícia a que tive acessoA professora do ensino básico do agrupamento de escolas de Mértola que fez filmes pornográficos na sala de aula tomou uma dose de comprimidos no dia 16 de Novembro, um sábado, alegadamente para tentar o suicídio. Deixou cartas de despedida aos familiares e conduziu alguns quilómetros até uma barragem próxima de casa.”
É um dos finais possíveis. Para quem não acredita que em Mértola haja apenas a memória dos mouros, a comissão de mães e uma estrada que leva até à barragem, resta fazer chegar estas palavras à professora: se alguma vez, numa escola como esta, o miúdo que fui a tivesse espreitado, não teria contado em casa, nem porventura os meus pais a teriam denunciado, nem o material teria deixado de ser pedagógico.


Tristana, de Luís Buñuel, 1970

01 dezembro 2013

Lilith



Às cinco horas de uma tarde do fim de Novembro as ruas que levam ao Canal Saint-Martin enchem-se de gente que recolhe as crianças nas escolas. Hoje, a água do canal já reflecte as luzes e, numa ponte, dois rapazes fumam marijuana. Um pequeno grupo conspira à volta de uma carroça decorada com autocolantes amarelos que anunciam uma manifestação alternativa. Na padaria vende-se pão, brioches e bolos escandalosos com morangos e creme chantilly. Pelas janelas entreabertas, ao rés-do-chão, vêem-se oficinas familiares com costureiras, mulheres como eu, que brunem roupa, lojas discretas de pronto-a-vestir de contrafacção. Um casal ri alto e caminha sem destino aparente. Dois amigos, um homem e uma mulher, hesitam à porta de uma casa silenciosa. Um pai ouve o filho a contar como passou o dia, uma mulher debruçada num carrinho de rodas cantarola para um bebé sonolento. Uma rapariga entra num café, senta-se, despe o casaco, solta o cabelo, pousa os óculos. Junto ao Colégio Louise Michel, a porteira olha-me com preocupação: - Não pode entrar- dispara. Não se percebe se tem medo de mim, se de alguém que pode chegar a qualquer momento, por detrás dela. Nunca fiz tenção de entrar no átrio do Colégio Louise Michel, onde ainda ecoam as correrias das crianças cujos pais tardam. Vejo a porteira em sobressalto, a Marianne atrás dela com um decote tão generoso como o meu, a lápide recordando as crianças judaicas do bairro deportadas para os campos de morte, a leste, mais de quinhentas ali no X ème, é o que está escrito. Digo à porteira que o medo dela não tem razão de ser e que Louise Michel é um nome de mulher livre. Recomeço a caminhada, cruzo de novo o casal peripatético, ela é muito alta e jovem, ele já velho e espalhafatoso, fala e ri sonoro para uma audiência imaginária que, dos passeios, lhe dará certamente razão na disputa que arrasta com a jovem de andar desengonçado, sorrindo agora com desaprovação, como se sorri a um louco ou a uma criança que nos foge.
Numa ponte, um casal sobe os degraus de acesso à plataforma e dir-se-ia que sobem para os plátanos ou para o céu de chumbo de Paris, no Canal Saint-Martin. Perto do Hospital Saint-Louis, uma mulher para, junto à montra de um ginásio decorado com manequins estereotipados, de bicípites inchados, cabelo como o Tintin enquanto jovem, T-shirt de manga curta a rebentar nos peitorais oleosos. Vejo esta gente que amo serenamente, os homens, as mulheres e as crianças das orgulhosas cidades ocidentais, os filhos dos fuzilados da Comuna, dos deportados da Nova Caledónia, dos canaques e dos cabilas, e tenho uma alucinação benigna, a ilusão de partilhar a vida deles, de poder entrar nos quartos mal iluminados da Rue Saint-Maur, iguais àqueles onde me deito nestas tardes, putain de vie, mas onde encontrasse por fim gente de verdade, crianças a quem pudesse ajudar a arrumar os livros, um homem que pagasse mas me quisesse contar a sua vida que de certa forma resume todas as vidas. E chegada aqui, ao coração privado desta crónica, ao ponto em que a Rue Saint-Maur se afasta do Hospital e se cruza com a pequena Rue du Buisson, encontro-me no momento de máxima liberdade desta escrita e deste passeio. É o fim do dia, um cartaz numa parede descola-se e mostra, em tons de cinzentos, uma mulher acariciando o torso decepado de um velho que sorri. Le détournement. Chamo minhas a estas palavras com que escrevo, completamente fora do contexto e sem nomear as fontes, as que Louise Michel ensinava às crianças das escolas livres, livres como ela, livres como eu, ou aos camaradas anarquistas, o texto escondido no meio das frases, no espaço interior da escrita, no bairro árabe, corte de cabelo a três euros, fruta barata, música chamando à oração, botas pretas de cano alto, cadáveres de aves decompondo-se, entre a estação de metro da Gare de L’Est e Belleville, entre o anoitecer e o jantar, entre a empresa do genoma humano e o mercado de legumes, entre a Rue des Récollets e a Rue Oberkampf, entre os miúdos à saída da escola e vocês, mortos de quem já posso falar, enfim mortos, putain de vie, posso enfim nomear os que amei, putain de galère, e como me amaram e tiveram, os excessivos sentimentos que lhes dediquei, contrariando a razão e os bons conselhos dos que apesar de tudo tiveram reconhecido sucesso, e bem longe dos bairros populares ou mesmo aqui, na loja de bicicletas ultraleves ou dobráveis, pneus coloridos, alforges de marca, engenhosos cadeados de segurança, clandestina, c’est pas vraiment que j’aie toujours envie, aqui no ângulo morto das câmaras fixas e dos micro direccionais, aqui de luvas para não deixar DNA, palavras luvas onde soa a senha da revolta, bandeira negra, oh Louise, Louise, if it's true / tell it, tell it to me, vamos vingar todos os meninos levados nos comboios para leste, como se pôde escrever poesia depois deles, escrever sobre comboios, cuidado, aproxima-se o fim do texto, o sítio onde vou de novo ficar a descoberto, talvez aqui me leiam outra vez, Rue de La Fontaine du Roi, estou a ser filmada, tiro as luvas, porto-me bem, “não corras riscos, caminha devagar”, c’est la façon a moi de faire la guerre, na direcção do metro de Belleville, em campo-peito-aberto.

Louise Michel (Rebel Lives), Nic Maclellan (org), Ocean Press, 2004.

Tom Waits, Tell it to me, 1998



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24 novembro 2013

La jolie rousse




Ficámos, a Luísa e eu, no pequeno hotel da Rue de Chevreuse, em Montparnasse. À noite, quando chegávamos, o recepcionista, um homem enorme,  perguntava onde tínhamos jantado. Rue Bréa, respondíamos. E trocávamos palavras de circunstância, antes de subir. O nosso quarto tinha uma chave enorme com a letra A estilizada. No primeiro dia explicaram-nos que o A simbolizava Alphabet Amoureux, o nome do pequeno quarto do segundo andar que tínhamos alugado.
Uma noite, o recepcionista estava acompanhado. Um homem de barba curta e cabelo encaracolado, passeava-se na pequena sala onde eram servidos os pequenos-almoços e partilhou, discretamente, a conversa habitualmente circunstancial que mantínhamos com o recepcionista. Dessa vez não tínhamos jantado.  Trocámos a refeição por um concerto na Igreja da Madeleine. O Requiem de Verdi, pela Orquestra de Paris. Eles trocaram entre si algumas palavras que não recordo.
No outro dia de manhã, antes do pequeno almoço, parei na Livraria Tschann, no Boulevard Montparnasse, a escassos minutos do nosso hotel. Um acolhedora livraria, com toldo verde e escaparates no exterior, milhares de livros amontoados com algum critério, relevo para editoras pequenas , como a Berg, onde Charlotte Delbo publicou uma carta a Louis Jouvet, o actor e encenador francês, escrita em 1951 e que Jouvet nunca leria, pois morreu nesse ano, e acabou por ser publicada em 1975, “quando todas as recordações lhe voltavam”. Mas nessa ocasião eu não conhecia ainda Delbo e a minha atenção foi sobretudo atraída pela correspondência de Simone de Beauvoir com o seu amante americano, Nelson Algren, troca que decorreu entre os anos de 1947 e 64, e que Sylvie Le Bon de Beauvoir editou, sem as cartas de Algren que, apesar de estarem na posse da filha adoptiva da Beauvoir, não puderam ser publicadas por imposição dos herdeiros de Algren. Durante  quase vinte anos, aqueles dois trocaram cartas de amor através das quais se pode conhecer melhor a multiplicidade desconcertante do Castor. O livreiro conhecia bem o livro, procurou-me a edição de bolso que eu viria a comprar e  ajudou-me quando lhe manifestei interesse em ver  a correspondência,  igualmente volumosa, de Simone de Beauvoir com Jacques Bost.  Foi já quando pagava que me apercebi de que o livreiro era afinal o homem que vira na noite anterior no Hotel. Ele reconhecera-me. Disse que visitava muitas vezes Gino, assim se chamava o recepcionista, e que mantinham uma sólida amizade ancorada no gosto mútuo da literatura e na partilha de longos serões na recepção do Hotel da Rue de Chevreuse.
Gino é um leitor esclarecido, contou ele. Traçou o seu próprio caminho, baseado em gostos peculiares, e numa verdadeira fúria de ler e de perceber, determinação essa que os anos têm depurado e fortalecido. No início, ele quase só conhecia alguma literatura popular e Alexandre Dumas, sobretudo Georges, o livro em que surge o personagem do crioulo. Mas quando gosta, ele faz interpretações profundas e originais. Tudo começou com Lisa, uma mulher que trabalhava na nossa livraria, continuou o livreiro. Lisa era uma judia cuja família fugira para o Brasil durante a segunda guerra mundial e voltara depois da Libertação. Nessa altura, ela era ainda jovem e casara com um jornalista do Le Monde. Anos depois, este homem ajudara o livreiro e um amigo, chamado Yannick, a comprar a Livraria Tschann. Lisa trabalharia na Tschann durante muitos anos. Quando era já bastante velha, saía à noite da Livraria e passava pelo Hotel da Rue de Chevreuse, de regresso a casa. Através dos vidros via Gino a ler. Uma noite bateu no vidro, empurrou a porta e disse que estava cansada e que precisava de fazer uma escala. Quando se despediu, emprestou-lhe um livro. Mais tarde disse-lhe onde trabalhava e  que podia usar a livraria como biblioteca, pagando no final do mês e de acordo com as suas disponibilidades. Foi assim que Gino leu dezenas de autores, primeiro os favoritos de Lisa, depois outros que ia descobrindo. Um dia Lisa deixou de vir e, algum tempo depois, em lugar de Lisa veio Fernando, o livreiro.
Na última noite que passámos em Paris jantámos num pequeno restaurante chamado Le Timbre, onde nos sentámos, cotovelo com cotovelo, com a jovem ruiva canadense e o seu amigo inglês, bolseiros em Paris, no exacto momento em que se apaixonavam. No fim da refeição ela levantou-se para ir a uma pequena divisão das traseiras, o que originou uma complexa movimentação de mesas e cadeiras. Quando o rapaz se voltou a sentar, cravou os olhos nas suas longas pernas e, mal ela saiu do seu campo visual, um sorriso de beatitude afivelou-se-lhe no rosto, o sorriso estulto dos homens nas fases iniciais do enamoramento.
Quando chegámos ao Hotel contei a Gino a minha ida à Livraria Tschann e o encontro com Fernando, bem como as revelações deste sobre os seus hábitos literários. E, como ele sorrisse, interroguei-o sobre os livros que estaria a ler entretanto. Gino sacou de uma mochila e começou a mostrar os livros que escolhera para aquela noite. E entre eles estava a colectânea de poesia francesa onde, entusiasmado, escolheu o poema de Guillaume Apollinaire intitulado La jolie rousse .
- Leia, por favor- pediu ele. E perante a minha reserva, começou:

Eis-me diante de todos um homem cheio de senso
Conhecendo da vida e da morte o que um vivo pode conhecer

Agora ouço-me a ler. Leio devagar, apesar de tudo com poucas hesitações.


Sede indulgentes quando nos comparardes

-Pare – ouço-o sussurrar. Pare um pouco. E Gino cumprimenta um casal que entretanto se aproximara e a quem entrega uma chave enorme, por sinal com o símbolo P. P de Paraíso, é o que penso.

Com aqueles que foram a perfeição da ordem
Nós que em toda a parte buscamos a aventura

E acabamos como dois jograis, enquanto a Luísa assiste divertida.

Eis que retorna o verão a estação violenta
E a minha juventude morreu como a primavera
Ó sol chegou o tempo da Razão ardente.


Spectres, Mes compagnons, Charlotte Delbo, Berg International, 2013
Georges, Alexandre Dumas, folio
La Jolie Rousse, Guillaume Apollinaire


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