17 junho 2014

Gente de Dublin sem destinação




Agora que estamos em Dublin há oito dias começa a habitual confusão onomástica e fisionómica. Nas ruas mais animadas, distingo, entre a multidão, um vulto conhecido. Pode ser familiar: o meu vizinho da rua Verde Pino, um colega de curso, a secretária do ensino médico. Ou o Rui Batista. Há muitos anos que vejo o Rui Batista, eternamente jovem, com a melena asa de corvo e sorriso sarcástico, perpetuamente a caminho de um destino pouco óbvio. Ou actores e locutores, gente célebre da televisão, que consideramos íntimos, e quase nos espantamos quando se torna evidente que o reconhecimento não é recíproco. Quase sempre são mortos, os indivíduos que se cruzam comigo, nos lugares que visito. Pessoas que desapareceram, algumas há imenso tempo, e que agora se passeiam nas grandes cidades, entre as multidões, quase sempre sozinhos, ostentando um ar antigo, roupa anacrónica e penteados fora de moda, vagueiam sem destino, de olhar perdido, mas tranquilo, como os turistas sem guia. Vejo os meus amigos destinados a uma morte precoce, o Boléo, que morreu quando tínhamos quinze anos, o Fontão, de testa alta e confiança, o Néné, distribuindo a uma roda de admiradores a sua ironia desconcertante. O seis do 2ºA , o Sousa, a quem o padre de Moral incumbiu da difícil tarefa de me ir buscar para a missa de domingo. E com eles vem quase sempre a dona Beatriz, a minha professora de Português, caminhando com uma encantadora retroversão da anca. E o meu estranho professor de Francês, microgénico, e de voz profunda. Ela acreditava que eu seria grande, ele adivinhava já os defeitos que eu viria a revelar. É para aqui que vieram – penso. E faz sentido. Vejo-os de relance, meio encobertos por outros transeuntes, quase sempre afastando-se mim. Não parecem ter fome nem frio, como convém à sua condição. Não têm destinação. Mas ninguém parece ter destinação, nestas ruas de Dublin ao fim da tarde. Apenas procuram o que resta do sol, como toda a gente. Quando apresso o passo para os ver mais de perto e desfazer a confusão, desaparecem. Estando eu na esquina de Exchequer Street com St. Andrews, vejo-os subir a rua, a esta hora da tarde já ameaçada pelas sombras. Vejo como se aproximam do cruzamento onde estou, encostado à porta do Foggy Dew, e como se desvanecem quando entram num miraculoso cone de luz feérica, como tremem e se extinguem. No momento da extinção há uma fracção de segundo em que se definem com clareza. O senhor Garcia está mais magro, embora continue rotundo. O professor de Alemão, com o cachimbo vazio, avança pesadamente e é fotografado, sem que o note. A mulher que prodigiosamente o vê e fotografa, com a máquina à altura da face, nunca verá esta fotografia nem entra, por enquanto, nesta história. Se falar sobre isso, se disser à Luísa: - Olha, o Ivo. E a ouvir repetir: - Ivo, que Ivo ? E lhe responder: - O Ivo Cortesão, o meu professor de Francês no segundo ciclo. A Luísa sorri, divertida e sem surpresa: - Que engraçado, já não via o Ivo Cortesão há vinte anos, quando ficámos lado a lado no comboio, numa ida a Lisboa... E então vejo o meu pai. Entre todos os conhecidos que encontro em Dublin, ao sétimo dia, quando já decorreu tempo suficiente para sabermos de cor algumas ruas, alguns trajectos, os horários do comércio, os cais do centro da cidade, pode acontecer vê-lo. Em Dublin ou em Madrid. Em Paris. Em Milão e em Londres. Nunca o vejo em cidades mais pequenas. Nunca se aproxima. Nunca olha de frente para mim. Está quase sempre de costas, caminhando na mesma direcção, sem pressa. Acontece que aqueles que se interpõem entre o meu pai e nós, caminhando devagar, como fazem os turistas sem programa, o ocultam totalmente, ou se viram para trás, sentindo o peso do nosso olhar. O meu pai nunca se volta. O meu pai com a gabardina branca. O meu pai com um casaco castanho. A sua cabeça brilhante. As grandes orelhas. O modo que ele tinha de atirar ligeiramente os pés para a frente, ao andar. O nariz quebrado de boxeur. Que não vejo. Pois não se vira. Nunca se vira.

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Alfarelos, excerto de um poema





- A minha vida é extraordinária. Tenho pena de não vos poder contar tudo. - Eu! Eu! Eu! - repetiu a Teresinha, censurando o meu egoísmo. Mas temos de gostar de nós, não é? É o que a Teresinha costuma dizer. - Gostar de si própria é um pressuposto para a felicidade - é assim que ela diz. Ou ainda: - Quem gostará de nós, se não nos soubermos apreciar? Mas o lema da Teresinha não se aplica a toda a gente. Foi por isso que vim de comboio para os anos dela. Por isso e porque gosto de andar de comboio. Ao domingo há sempre um grupo de ferroviários a ocupar os lugares centrais da carruagem salão. São homens de meia idade, falam o tempo todo, virados uns para os outros. Uns gostam de falar e outros gostam de ouvir. Ao meu lado vai um homem estranho. Um coronel reformado, é o que penso. Por causa da filha, sobretudo. A filha de um coronel reformado, com o cabelo esticado e um casaco clássico que despe, com inesperada sensualidade, quando repara que, contra a minha vontade, a olho com insistência. Tem uma blusa justa que, ao rodar os ombros, lhe desenha um sutiã antiquado. Ou serei eu que sou antiquado em sutiãs, sobretudo quando se trata de filhas de coronéis. Uma das escritoras que leio, declarou há pouco que detesta a palavra blusa. Eu gosto. Tem duas vogais separadas por uma consoante, deslizando entre elas como seda sobre pele lisa. E um início que se solta como o gás do champagne e está na palavra blue e na palavra éblouissant, imitando o som que liberta ao ser despida. Já o mesmo não se pode dizer da palavra sutiã, o grafismo absurdo adoptado para a palavra francesa que democratizou o corpete ou porta-seios. Sem possibilidade de continuar a examinar a filha, tento perceber melhor o pai. Cabelo cortado à escovinha, calças justas, meia bota de montanha com cromados brilhantes. Penso neste homem a escolher calças e botas e como esse momento é revelador para um caixeiro arguto. O coronel tem uma fome devastadora e come uma maçã como só pensava que uma mulher o soubesse fazer. Uma mulher a recrear o pecado original, uma das milhares de Evas sempre prontas a exibir um excesso de carnes roliças, um rubor indisfarçável, histaminérgico. O homem tem óculos de sol e um MP3, pousados sobre a mesa. De vez em quando coloca um auricular, apenas um. Conserva-o alguns segundos, com uma mão suspensa perto da face, e depois retira-o como se queimasse ou a música o decepcionasse profundamente. Não sei o que ouve este homem, que tipo de música selecciona, nem porque esta lhe é, subitamente, tão repulsiva. Eu ouço Neil Hannon dos The Divine Comedy, cuja última gravação foi há 4 anos, e sou periodicamente atravessado pela questão recorrente que formulo assim: cheguei tarde às coisas interessantes da vida ou tenho ainda tempo? E serão estas? Encanto-me com a doce e genuína simplicidade de Have you ever been in love. Mas The Lost Art of Conversation ainda não tem a letra disponível no Lyrics.com e não posso impedir-me de pensar que é nessa canção que está, em código, mas fácil de decifrar, como sempre sucede com as canções da rádio, a verdade elementar das nossas comuns existências. Há momentos assim nas viagens e há momentos assim fora das viagens, aos domingos de manhã, quando quase todos dormem e a escassez de transeuntes nas ruas ou a abundância de lugares vagos no Alfa criam a ilusão de estarmos a viver um tempo suplementar, que ganhámos sem merecer, mas que, apesar disso é precioso e configura, de certa forma, a nossa vantagem. Paramos agora em Alfarelos. Escrevo uma mensagem cujo texto é : Alfarelos. E o que quero dizer, realmente, é Alfarelos, princípio de um poema como o Álvaro de Campos escreveu Excerto de duas Odes e rapidamente, em menos de meio século, se tornou natural para tantos leitores que isso significava Fim de duas Odes. Alfarelos, escrevo na mensagem para a Teresinha, esquecido de que ela não partilha as minhas referencias poéticas, a nouvelle chanson que ultimamente ouço obsessivamente, os escritores discretos em que me especializei e para os quais escrever Alfarelos é todo um programa, e acrescentar palavras a Alfarelos uma tarefa inglória e votada ao fracasso, que só pode ameaçar a perfeição desta mensagem lacónica que a Teresinha deve estar agora a receber Alfarelos sem perceber se viajo para ela ou para longe dela.

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