22 agosto 2009

Todas as falésias



Caiu a falésia, ruiu a arriba. E esmagou os pobres incautos que tinham procurado a sua sombra. Nas horas seguintes todas as fases do luto: 1. Não acreditamos 2. Não nos podemos habituar à ideia 3. O acontecimento revolta-nos. 4. Queremos culpados. Identificar e punir os culpados 5. Acalmamos e entristecemos.
Este trabalho de luto é alimentado pelas televisões, hoje. Amanhã serão os jornais e depois outra vez as televisões. Como as carpideiras, o clamor acende-se a cada ligação em directo. E de cada vez cresce o coro securitário.
Imagine o leitor que vivia na aldeia de G., na Beira. Saía de casa de manhã para a Escola, na vila de P., a 5 kms. De inverno os caminhos estavam gelados. Não havia camioneta escolar, nem seguro escolar, nem bolsas. Os meninos de G. juntavam-se para o percurso, davam as mãos nos trechos mais escarpados. No mês mais rude, os pais de G. alugavam um quarto em P. onde os miúdos ficavam a fazer os têpêcês. Houve meses de intempérie em que tiveram de lá dormir.
Imagine que tem 15 anos e vai acampar com amigos junto a um rio. Tem de escolher o terreno, limpar o mato, alisar o chão retirando as pedras, montar as tendas. De madrugada fazem uma escalada. O percurso está marcado, foi revisto umas semanas antes.

A nossa relação natural com a natureza é assim. Respeitamo-la. Tememo-la. Sabemos que ela varia com as estações, com as horas do dia, com as condições meteorológicas. Que um lameiro empapado é perigoso, mas uns meses depois se atravessa facilmente.
A cidade alterou esta relação natural, transformou as crianças em playsituacionistas obesos e os adultos em turistas de disneylândia. O mundo é hoje, para os nossos contemporâneos das cidades, um parque temático. Anulámos todos os sensores. Alguém, a quem pagámos num contrato social paradoxalmente sem propinas, estudou e anulou os perigos. Alguém vigia. Deitamo-nos debaixo das arribas. Penduramos as toalhas na sinalética de aviso.
Ruiu a falésia. Vem o Pai, o Tutor e os prefeitos. E o responsável do Parque de Diversões. E essa gente do Estado menos Estado. Quarenta carros, quatrocentos homens. Amanhã instalaremos sinalética adequada, de maiores dimensões. Depois, em acção punitiva, derrubaremos a arriba assassina. E em breve todas as arribas e todas as falésias.

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9 Comentários:

Blogger Paulo disse...

...e sempre à espera que alguém faça por nós. Magnífico texto. Somos, cada vez mais, isto mesmo.

domingo, agosto 23, 2009  
Blogger zazie disse...

Uma grande lição para banhistas irresponsáveis- como disse o ministro do Ambiente:

http://cocanha.blogspot.com/2009/08/aproxime-se-bem-leia-com-atencao.html

domingo, agosto 23, 2009  
Blogger zazie disse...

Exactamente- começamos agora a sair da pré-história e já sabemos dizer a palavra avisos.

A cidadania demora séculos. Daqui a 3 talvez se descubra que existe outra coisa para além da "culpa judaico-cristã" que se chama responsáveis oficiais.

Mas, até lá, e numa altura de campanha eleitoral, era uma grande aleivosia vir-se agora dizer que podem existir irresponsáveis não esborrachados.

domingo, agosto 23, 2009  
Blogger M disse...

No areal de Vilamoura, um sinal vertical,de vermelho pintado,e onde se lia: "DANGER ROCKS",estava colocado ao lado da cadeira do nadador salvador,a 20m do fim da àrea concessionada do Nikky Beach e ainda longe da linha de àgua.
E foram muitos os turistas,com um enome sorriso nos lábios,que não resistiram... à fotografia,so far!

É comprovada a falta de uma cultura de segurança mas, o desejável desafio,era partir das evidências para a motivação, para a valorização e promoção dessa mesma cultura.
Jornalistas e governantes tinham a estrita obrigação de se constituirem,definitivamente, como uma parte da solução!
Fazer bem exige saber,meios,tempo e coragem.Não há milagres!

domingo, agosto 23, 2009  
Anonymous bicha-cadela disse...

Aquela discussão inaugural do dia de praia: aqui, não mais ali, tem agora uma nova matemática, para além da distancia mínima de respeito pelas toalhas já caídas, a suficiente para que não se leve como os perdigotos mas, se possa ouvir as conversas, a regra é a seguinte, afastar-se uma vez e meia a altura da falésia. Portugal perderia muitas praias. (as melhores). Fiquem em casa e morram afogados na banheira.

domingo, agosto 23, 2009  
Anonymous fernando f disse...

E não virá aí a betonização das arribas? É que depois delas segurinhas já lhes podemos pôr uns prédios em cima, só é feio prós inimigos do progresso e dá milhões.

domingo, agosto 23, 2009  
Blogger Filipa Júlio disse...

"para bailar la bamba
para bailar la bamba se necesita
una poca de gracia
una poca de gracia y otra cosita
ay, arriba y arriba
ay, arriba y arriba y arriba iré"

segunda-feira, agosto 24, 2009  
Blogger A Lusitânia disse...

e não virá o dia, sim esse, que por segurança se acabem também com os banhistas na praia????

quarta-feira, agosto 26, 2009  
Anonymous Anónimo disse...

"de Inverno os caminhos gelados"? Na "Beira"? Isso foi quando? Na ultima era glacial que atingiu Moçambique? Pobres crianças.

Pedro

terça-feira, setembro 01, 2009  

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