30 junho 2009

O beijo de encher balões


Almaguil Menlibayeva


Um destes dias fui à praia e assisti ao que julguei ser o nascimento de um beijo. De um tipo novo de beijo, quero dizer. Os antropólogos que me corrijam mas tenho por certo que o frenchkiss foi uma aquisição da segunda metade do século passado. A avó Cristina confirmou-me: não conheceram nem praticaram. Nem ela, insaciável leitora de Delly e de Daphne du Maurier, nem nenhuma das raparigas da sua geração. Por regressão vitoriana ou porque nem tudo, na convivialidade, está descoberto. As línguas haviam de se encontrar em 1962, infelizmente tarde para Philip Larkin, que no Reino Unido registou o fenómeno. O frenchkiss adoptou entre nós uma designação abastardada, que me chocou desde que a ouvi pela primeira vez aos rapazolas da rua responsáveis pela minha educação sentimental, e não reproduzo por sempre me ter parecido desrespeitosa e desprovida da gravitas que deve presidir a esta intimidade das mucosas.
Estava eu então na praia da B., agora surpreendentemente entregue aos rapazes do Guincho e do Baleal. Ao meu lado um casal. Ele espadaúdo, musculado e excessivamente bronzeado. Ela de fototipo 2. Ele sorrindo todo o tempo com grandes dentes brancos. Ela com o ar adoentado das grandes amantes. Ele amparando-a, ajudando-a a despir, dando-lhe o braço para descerem à rebentação.
Não sei se ela tomou banho. Voltei a vê-la sentada na areia, um dos braços à volta do pescoço do atleta, caras coladas. Eu não olhei, fiel à lição de Calvino, embora pense que devemos olhar discretamente, para poder ver, e às vezes, sabe-se lá, compreender. Fui tomar banho, uma espécie de gincana entre os surf kaiaks que durou uns vinte minutos, bem medidos. Quando voltei eles estavam na mesma posição, na mesma imobilidade, a mesma apresentação frontal das faces. Olhei enquanto me secava. Ele tinha a cabeça inclinada e ela estava virada para mim. Podia ver os olhos dela, inexpressivos, grandes olhos de gato persa, olhos azuis de peixe lírio. Tronco imóvel, um braço flectido em torno do pescoço do homem e a mão descaindo para o dorso dele, o outro estendido até à areia onde os dedos se enterravam. A única coisa nela que se movia eram os olhos, muito abertos, pareciam fitar-me, ligeiramente interrogativos. É estranho, alguém que beija e é beijado e conserva os olhos abertos, de tal forma que, de todos os lados em que a vemos nos parece fitar, como naqueles quadros do Museu do Prado cuja técnica permite este efeito, celebrado pelos guias das excursões de Castilla la Mancha e Extremadura. Continuaram assim até ao pôr –do–sol, quando os surfistas arrumaram o material e regressam a casa. Já voltei a ver este beijo, e receio ter estado demasiado desatento e estar a relatar-vos um meme que já entrou na sua decadência: o beijo da praia da B., o beijo extático dos atletas sexuais, o beijo tântrico de encher balões.

(Este blog entrou hoje no sétimo ano consecutivo de publicação)

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