19 agosto 2007

Passeio a Vieira


Rineke Dijkstra

Na minha rua do bairro operário só há um movimento demográfico. A morte. Geralmente aos pares. Assinalada pelos avisos fúnebres do poste do topo este. Gente que morre discretamente, de quem não se nota a falta. As mulheres morrem de repente. Os homens morrem duas vezes. A primeira com algum barulho, ambulância de INEM à porta, algumas lágrimas. Depois ressuscitam para exercícios esforçados nas varandas, ou nos pátios das traseiras, ao fim dos dias sem vento, sob o olhar sem ilusões dos cães. A segunda morte é silenciosa, apenas esta cruz no poste que a agência funerária consagrou à notícia pública.
Alem da morte não há mais nada na minha rua do Bairro operário. Não há raparigas de lua irritável, nem em idade de procriação. Só a menina Cândida, do 36. Este sábado, às oito da manhã, esperei por ela na paragem dos transportes públicos, onde pára o pullman de luxo do Eldeclube. Ela não veio. Ainda tive esperança que tivesse dormido com uma colega e entrasse na Rotunda das palmeiras às oito e dez, ou na Arregaça às oito e quinze, na Fernão de Magalhães às oito e vinte, ou no Pinhal de Marrocos às oito e trinta. Não veio. O pulmann de luxo encheu, o guia disse que se chamava Alcides Barbosa e que estaria connosco todo o dia. Tinha um aparelho electrónico agarrado ao ouvido, a baloiçar à frente da boca, e começou por recolher o dinheiro, 18.95 €, um preço incrível. Depois fez um resumo do programa. Íamos tomar o pequeno-almoço às instalações do Eldeclube, onde encontraríamos gente de todo o país, ou pelo menos do centro do país. Gente como nós, alegre, com vontade de se divertir. O guia repetia muitas vezes as palavras divertir, divertimento, animação, juventude. Dizia que tínhamos sido todos premiados, que iríamos passar um dia inesquecível. - Vamos a ver, disse a mulher que estava ao meu lado, que infelizmente não era a menina Cândida. O pullman de luxo não pôde vir por contratempos, mas este era bom, o senhor Alcino disse que era bom, pôs o motorista a dizer que era bom, era uma máquina, e aproveitou para apresentar o motorista que nos acompanharia todo o dia inesquecível, o senhor Amadeu Barbosa. Alguns dos ocupantes já o conheciam e bateram palmas. O senhor Alcides gostou de ouvir palmas. - Palmas, gritou ele. Como eu vou gostar de ouvir palmas durante este dia inesquecível. Quando chegámos às instalações do Eldeclube, não bem às instalações do Eldeclube que ainda não estavam concluídas, mas às instalações provisórias, já lá estavam muitos homens e mulheres, a maior parte animados, excepto um grupo de gente com ar desconfiado. O senhor Alcino foi pô-los à frente de toda a gente, porque, disse ele, se via bem que estavam em jejum. Os casais que estavam ao meu lado disseram-me: - Em jejum não vem para aqui ninguém, que as pessoas não são tolas. Eu sou tolo, pensei, enquanto lhes perguntava porquê. Eles disseram:- Então é a primeira vez que vem? A sardinhada é boa, mas até lá, matam-nos à fome. Uma mulher que ouviu a conversa disse que pedia desculpa por se mitrar mas que não era bem assim, que se comprassem alguma coisa eles melhoravam o buffet. Outra mulher disse que as excursões da paróquia eram mais caras, e que aqui, ao menos não a obrigavam a ajoelhar. Um homem disse que boas excursões eram as das eleições, que acabavam em Lisboa com comida farta e bebida à discrição. O pequeno almoço era bom. Uma bebida tipo café e um papo seco. Se houvesse crianças fazia falta leite, ouvi dizer. - Crianças, mas vocês vêem aqui alguma criança?, riu-se uma mulher que falava muito alto e fazia rir toda a gente que tinha ao lado.
Nessa altura o senhor Alcides disse que nos queria apresentar um responsável nacional do Eldeclub, e mais qualquer coisa da filosofia, que não apanhei. - Vão começar as vendas, disseram alguns muito excitados. - A nós não nos impingem nada, disseram outros. - Então não te batas aos brindes, ralhou alguém.
O responsável nacional disse que as vendas iam decorrer em ambiente ameno, mas que antes íamos ter direito aos sensacionais brindes. Acho que fui dos únicos que ficaram sentados. Eu e alguns, que manifestamente não se conseguiam levantar. No meio da algazarra havia gente com cadeiras de praia, colchões de água, chapéus de sol a dizer Eldeclub o seu clube, almofadas pneumáticas e exemplares grátis da revista Luxo.
A seguir aos brindes foi a demonstração de vendas. Venderam de tudo e a todos. Ventoinhas e cobertores térmicos, varinhas mágicas, faqueiros, lingerie, baldes e picadores de gelo, casacos de couro, Priti Pollis, pulseiras e chás medicinais, Epileides, leques a pilhas, cheques que davam direito a consultas no Astrólogo Simas, a massagem na Giselle/escorts, a fins de semana na Charneca da Caparica.
Eu não comprei nada. O senhor Alcides deu conta e chamou-me ao palco. - O homem que não compra nada, disse ele. Porque é que não compra nada senhor... Como é o seu nome?
- Eu não compro nada porque sou sozinho.
Riram-se todos quando eu disse aquilo. O senhor Alcides insistiu. Que havia coisas excelentes para dar à namorada, aos pais, aos amigos, coisas excelentes para os solitários. Eu não lhe disse mais nada, nem o nome.
Depois houve almoço de bufete. Mas era difícil chegar aos tabuleiros. Pareceu-me que havia quem repetisse. Os homens queixavam-se de que o vinho era pouco.
- Esperem pela sardinhada, diziam os mais experientes.
Levaram-nos a todos para a praia de Vieira. Demorou, porque muita gente comprara a prestações e tinha que deixar dados completos e assinar papéis em triplicado que o responsável nacional e a secretária tinham preparado.
Na praia da Vieira pudemos ver as águas cristalinas, as areias douradas e experimentar os brindes. Era o que dizia o programa.
No fim houve sardinhada com vinho da região. Um cantor muito conhecido pôs toda a gente a cantar. As pessoas eram muito disciplinadas e foram para os pullman logo que chegou a ordem. O senhor Alcides não veio no regresso. Os mais velhos dormiram. Eu pensava na menina Cândida. Vai haver outro passeio a 3 de Setembro. É à Galiza. Dois dias. 79,95 €, um preço de sonho. Pedi ao motorista, que é do Eldeclube, para deixarem o folheto na menina Cândida. No 36.

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