09 outubro 2005

Reflexão

Era véspera de eleições, o dia que o calendário consagra à reflexão política e eu encontrava-me muito confuso. Estava internado no manicómio do Lorvão, a ler Doctor Pasavento de Vila-Matas, o que conferia uma certa legitimidade à fragmentação da minha identidade, o desvio da razão que motivara o internamento. Era sábado e tinha direito a um passeio pelos arredores calcinados dos fogos do verão. No manicómio eram todos abstencionistas: doentes, enfermeiros e o médico de serviço. Pior que abstencionistas: ignoravam o nome dos candidatos à câmara de Lorvão e alguns mostravam, compreensivelmente, mais interesse no jogo de futebol que a selecção iria disputar nesse dia que no acto eleitoral. Enviei um sms à minha psiquiatra perguntando-lhe em quem ia votar. Enquanto esperava lembrei-me que um dos candidatos era bailarino. Um bailarino defenderia seguramente pontos de vista próximos dos meus. Mas a lista do bailarino tinha, a crer nas fotografias, algumas pessoas de aspecto pouco recomendável. Apesar de tudo, votar no bailarino pareceu-me aceitável. Escrevi-lhe: Vou votar em si . Que o Secretário da sua candidatura não se iluda com o voto de infelizes como eu. Como a minha psiquiatra tardasse em responder lembrei-me que o meu primeiro dever, ao votar, era defender os meus interesses. A minha reforma dos Correios seria atingida pela reestruturação dos Serviços de Reforma da Nação, considerados sem sustentabilidade pelo Partido Social no poder que, para salvar o Estado Social, decidira demoli-lo. O Partido Social fizera muitas promessas no Lorvão. Eu desconfio das promessas. Além disso odeio a ICAR, revelou-me uma das minhas psiquiatras psiquiatrizantes , mas a ICAR aparentemente não vai a votos, e odeio os dirigentes locais e regionais do Partido Social. Depois, já no passeio e ainda sem respostas, lembrei-me da Flor, a minha amiga independente. E fiz-lhe a mesma pergunta. Ninguém como ela conhece a autarquia e os autarcas e não tenciona confundir-se com eles nem com os seus patrocinadores. Foi a primeira a responder: Se seguires a tua coerência terás problemas de consciência. Se fores pela maioria arriscas-nos a todos. A maioria absoluta é um perigo para os cidadãos. Segue o teu coração pela esquerda. Isto disse Flor, cheia de bom senso como sempre. Não tive muito tempo para pensar nos seus sábios preceitos. Seguir o meu coração é o pior conselho que me podem dar. O meu coração volátil, pronto a pedir ao que vem de Noite o impulso sem medida, a crença dolorosa no profundo, e depois batendo ao sabor de um sistema nervoso autónomo, bombeando um sangue excessivo para um corpo sedento de sossego e fidelidade. O meu coração não deve votar, a bem da República e do sucesso do Lorvão. Então lembrei-me de que devia pedir também a opinião do candidato da minha coerência, seria aliás batota não o fazer. Ele respondeu logo, com três razões para manter a minha coerência, duas cheias de passado e uma de futuro talvez. Fiquei a pensar na maldição de Flor. A consciência ferida pela coerência. Nunca sacrificaria à minha coerência, uma coisa completamente exterior e baseada em julgamentos de fora, a minha consciência, frágil mas minha, construída a partir da minha mais intima neurobioquímica. Entretanto a minha psiquiatra psiquiatrisante respondera-me: Não interessa o meu voto. Sabe do meu profundo desagrado com a política. O Heitor quer saber do seu voto. Venho lembrar-lhe que só tem um. Dobra o papelinho e acabou-se. Os senhores da mesa não o deixarão votar tantas vezes quantas as personalidades em que se refugia. Grande ajuda, como sempre, a da minha psiquiatra. Eu não sou Walser. Robert Walser, a quem Doctor Pasaviento é dedicado, isto é seria dedicado se não fossem dedicados a Paula de Parma todos os livros de Vila-Matas, era um homem bom. É uma felicidade para o mundo que tenha existido um homem como Robert Walser, e cinquenta anos depois um livro como Doctor Pasaviento. Walser não quis salvar o Mundo, nenhuma classe ou corporação, nem sequer o município de Herisau, o hospício onde o internaram. Walser simplesmente escreveu uma obra serena, vinda das regiões inferiores. E nos últimos vinte anos da sua vida desapareceu.
Eu não sou bom. Detesto a ICAR, embora não o soubesse, e fosse preciso que uma psiquiatra psiquiatrisante que nem sequer consultara mo diagnosticasse. Detesto os líderes do Partido Social. E ultimamente, uma parte de mim acha perigosos os líderes, todos os líderes, que organizam os partidos, arregimentam pessoas como o simpático bailarino, para as suas listas não terem apenas as faces insuportáveis do poder, prometem aquilo que não deviam, nem podiam por não terem condições de cumprir. Estava nessa fúria interior contra o meu desgosto de não ser Walser, de o Lorvão, onde as árvores ardidas ainda não foram cortadas, não ser Herisau, quando o bailarino me respondeu.



(créditos para Doctor Pasaviento de Enrique Vila-Matas. Foi Vila-Matas quem cunhou o termo psiquiatra psiquiatrisante para Herr Pasaviento e cinquenta anos depois do dia fatal de 1 de Janeiro de 1956, procurou Walser em Herisau, acompanhado por Yvette Sánchez, catedrática em San Gallen, e do livro de Carl Seelig. Nenhum outro personagem tem ligação com a realidade, e Heitor não está, nem esteve internado no Hospício de Lorvão. Não há, tanto quanto é do meu conhecimento, nenhum bailarino nas listas concorrentes à Câmara Municipal de Lorvão. Só o conselho de Flor e a minha confusão são verdadeiros. )

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