07 outubro 2005

A lesma



Um dia o meu amigo João Maria levou-me ao atelier do Victor Melquíades. Era perto da Covilhã, um barracão com uma magnífica visão da Cova da Beira. O artista isolava-se e fabricava objectos simples de granitos mais raros. Um deles chamou a minha atenção. Era um bloco de granito rosa polido, uma concha que nas extremidades se derretia e derramava sobre um pódio negro. Fui apresentado como director dos Correios de C. , embora fosse um quadro intermédio com ocasionais funções directivas. Estávamos no início das privatizações e gozei nesse período de um fugaz desafogo económico. Melquíades nunca me olhou de frente, recusava explicações sobre os seus objectos, de qualidade muito desigual. Eu sabia que ele tinha família, mas se me tivessem dito que vivia naquele barracão, curtido pelo frio da serra e entregue à loucura da pesquisa e corte dos granitos, teria acreditado. Era um conhecedor profundo da serra mas nem para esse tema consegui o seu entusiasmo. Manifestei interesse no granito rosa, ele pediu-me uma certa soma que paguei sem regatear. Transportei aquele peso com a ajuda do meu amigo e coloquei-o, com algum esforço, na casa que então habitava. A casa tinha dois andares, uma cave onde estava a sala e a cozinha e uma sub-cave com os quartos. A pedra ficou no cimo da escada. Vista de baixo parecia uma lesma que iniciasse a saída da base negra na direcção dos quartos. Passou a chamar-se a lesma. Nunca ninguém lhe dedicou qualquer afecto ou atenção especial. Era uma pedra no cimo das escadas. Quando mudei de casa passou para um corredor pouco iluminado. Vista de cima continua a dar a ilusão de movimento. A dona Vanda, a senhora que vem ajudar à limpeza, olha-a sempre com reserva e precaução. Durante uns meses tive um cão que nunca tratou a pedra com a indiferença que habitualmente dedicamos aos minerais. Desviava-se, rosnava-lhe. Apesar de tudo o granito rosa polido oferece uma superfície que apetece acariciar, um apelo concavo, uma perfeição manchada apenas no centro como se uma pequena rede capilar aí tivesse começado a sangrar. Mas penso que é o contacto com o pódio que dá à pedra o aspecto de molusco e, ao lhe conferir movimento, cria nos espíritos mais sensíveis uma certa repulsa ou apreensão.
Uns anos depois da lesma viver em minha casa quis o acaso que o meu amigo João Maria organizasse uma festa dos anos sessenta. Os convidados apareceram com calças à boca de sino e mini saias, dançaram ao som dos Kinks e dos Beach Boys, fecharam-se nos quartos a fumar charros e beberam toda a espécie de cocktails que os donos da casa tinham recreado. O mais animado era Victor Melquíades, enorme, excessivo. Numa ocasião aproximei-me dele e perguntei-lhe em que fase se encontrava do seu processo criativo. Melquíades estava bêbedo. Nunca olhou directamente, como no nosso anterior encontro. Mas a certa altura aproximou-se muito, como se fosse fazer uma confidência e disse-me: - Lembras-me um gajo dos Correios que conheci há uns anos. Era parecido contigo, mas mais alto e forte. Apareceu-me na serra com o João Maria e vendi-lhe uma merda por dois mil e quinhentos euros. Sentia-lhe o hálito. Pensei na minha lesma, ignorada pelos raros amigos que me visitavam, temida pelo cão, silenciosa no meio de um corredor, numa viagem que parece estar sempre a iniciar-se. É mentira que tivesse pago aquilo por ela. Aliás não foi em euros. Foi em escudos, em contos. Talvez não tivesse sido eu. Talvez ele confundisse duas peças, duas visitas, duas transacções, .

0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial