19 outubro 2005

ALMA

Estava então há duas horas sentada ao meu lado quando me falou. Duas horas de perturbação exaltada. Encontrava-me no seu campo magnético, inteiramente polarizado para ela. Embora olhasse em frente, na direcção do formador, as minhas moléculas orientavam-se insensivelmente para ela, até estar todo voltado e apenas virar uma cara inexpressiva para o homem que falava. Tudo o que em mim sentia estava de costas para a sessão. A certa altura percebi que estava a respirar ao ritmo dela, doze vezes por minuto, e para minha desgraça a expirar tão fundo que as artérias do cérebro se apertavam. Tomava notas para poder baixar a cabeça, tinha frio e calor ao mesmo tempo. Calor no ombro esquerdo, na face externa da perna e na face do mesmo lado. Como toda a perturbação tem um fim, sobrevivi, e passei para o estado de calma letargia que se interrompeu quando a ouvi falar. Viraram-se para ela o que restava das minhas moléculas e então vi-a. Sorria. Há-de sorrir assim eternamente na minha memória, mesmo que em Strasbourg o rosto se tenha tornado grave. O dr .L. disse-me um dia que Vila-Matas nunca descrevia fisicamente os seus personagens. Que as poucas mulheres que se atravessam na deambulação de herr Pasaviento não têm corpo, nem cheiro, nem se sabe como andam. Assim eu descreverei Alma como a vi no primeiro dia, quando ainda não sabia sequer o seu nome, para mostrar que Alma existe fora da ficção deste blog e que o meu projecto não é desaparecer. Alma é uma mulher, não é Daisy Blonde, a Bomba, a namorada da juventude em Bronx, nem Yvette que leva o narrador vila-mateseano a Herisau, nem Eve Bourgois a editora francesa, nem Leonor, a rapariga de Nápoles que afinal não se casou com um farmacêutico, todas imateriais para não perturbarem a complicada viagem de desagregação da subjectividade ocidental. Alma não é una cosa mentale, embora eu a tivesse amado assim.

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