24 setembro 2005

Elisabete, Imaculada e Malcolm


A praça onde vive Henry Perowne, o neurocirurgião de Sábado, fica nas traseiras da Torre dos Correios de Londres. Quando escrevia sobre o livro de Ian McEwan lembrei-me de Elisabete, uma jornalista de televisão da Rede 5, que uma vez me entrevistou sobre a privatização dos Correios. O trabalho dela era sério mas a minha participação foi lamentável e prejudicou irremediavelmente o resultado final. Fiquei com uma grande admiração por ela, a forma receosa com que fazia as perguntas, como se esperasse uma confidência que me iria expor excessivamente e disso me estivesse a advertir. A Torre dos Correios iluminada da capa de Sábado trouxe-me à memória os episódios do início da privatização, Elisabete, e a minha equívoca promoção. No momento em que era assaltado por aquela evocação recebi uma chamada e vi no visor o nome dela, o que não sucedia há largos meses. Não atendi. Não atendo chamadas. Leio os nomes, quando estão identificados, ouço o voice mail e faço eu a ligação, quando é caso disso. A conta do telefone é astronómica mas tenho a sensação de só falar com quem devo. Ouvi Elisabete dizer que queria falar sobre “um assunto que talvez fosse importante e do meu interesse”. O tipo de recado a que não respondo. Não me lembro de nenhum assunto que possa ser simultaneamente importante e do meu interesse. A modernização dos Correios está quase concluída, vamos continuar a apear o pessoal excedentário, recebi o carro e o cartão a que este ano tenho direito, faço parte do Grupo Europeu de Contactos. Nada que excite uma jornalista como Elisabete. Mas a dupla coincidência, a sobreposição da Torre com a chamada, alertou-me para a possibilidade do dia ser especial. Quando assim é fico à espera. De pé, à espera, imóvel. Não sucedeu nada que mereça ser recordado. Só algumas horas depois a agenda do telefone tocou para recordar um compromisso. A consulta da Imaculada. Era então a isso que me conduzia aquela promissora sequência. À minha busca de sentido no sem-sentido da subjectividade. Imaculada é a minha psiquiatra. É assim que lhe chamo, pelo menos. Primeiro pelo seu aspecto antiquado, com blusas de renda e cabelo apanhado. Depois porque sendo adepta das teorias cognitivas nunca me interrogou sobre sexo. Finalmente porque, desde a primeira hora, provavelmente por resposta mimética, adopto com ela uma linguagem completamente desprovida de sedução. Dizem-se coisas incríveis aos psis. Quase sempre lixo, mentiras, literatura de novela, lama das profundidades. Aquele tipo de coisas que a mente saudavelmente atirou para as caves e que a situação de entrevista tem prazer em recuperar. Passei anos a resistir, soltando o grito de Eliot a Stetson, e agora Imaculada faz parte da minha agenda semanal. Entro, cumprimentamo-nos sem nos tocarmos e ocupo o cadeirão desconfortável, a três quartos do seu sorriso terapêutico. Estar sentado para o perfil do psiquiatra cria o tipo de situação em que o paciente sente o dever de afectar uma enorme interioridade, quase sempre revolta em sofrimento. As pessoas que não estão excessivamente doentes dizem então o que julgam que um psi está habituado a ouvir. É importante agradar ao psi, justificar interiormente o preço e a maçada da consulta. O curioso é que a subjectividade me faz mal. Falar de mim, apesar de ser a pessoa mais desinteressante que conheço, é fácil. Difícil é tentar articular com alguma coerência as aquilo que sinto e faço desordenadamente, simplificar o meu caos informe em aspectos fenomenológicos que ela conheça e seja capaz de interpretar, dar à Imaculada uma linha de fuga, um nó que ela consiga desatar, para continuar a apreciá-la profissionalmente e ter um motivo para marcar a consulta da próxima semana. A hora da semana em que Imaculadame recebe passava-a eu com Malcolm, um pintor que foi meu professor de Inglês. Vivia num estúdio modesto com uma sala e um quarto. As aulas decorriam na sala, arrumada com uma mesa redonda de camilha, algumas cadeiras, um sofá de napa e um pequeno forno. Malcolm tinha sempre as mãos e as unhas manchadas de barro e tinta. Perto do Natal levei-lhe uma chaleira e passámos a tomar chá, enquanto as aulas decorriam, enfadonhas mas impregnadas de felicidade. Para tornar as aulas menos monótonas ele procurava temas ligados aos meus interesses. Mas eu não lhe consegui mostrar nenhum interesse que pudesse servir de âncora àquela hora de pasmada sonolência. A casa não tinha televisão. Um dia falei-lhe do programa que Elisabete iniciara na Rede 5, e como ele tivesse mostrado curiosidade levei um aparelho velho, onde, sem ele dar conta, mandei instalar Cabo. Passámos a ver os desafios mais importantes da Liga inglesa. Um dia vimos também o programa de Elisabete. Em horário de repetição. Malcolm gostou. Fez-me algumas perguntas para justificar os honorários e a seguir confessou-me que conhecia Elisabete de um bar chamado Q-spot, na parte alta da cidade. Era impossível. Elisabete não frequenta bares. Ele insistiu. Naquele dia a casa cheirava a barro cozido e Malcolm tinha as mãos azuis, porque tentar reproduzir a azulejaria das estações abandonadas dos caminhos-de-ferro era a sua última obsessão. À saída disse-me:
- Heitor, tenho que aumentar o preço das classes.
Eu respondi :- Força Malcolm. Será sempre mais barato que o preço de um psiquiatra.
Não era. Foi assim que abandonei Malcolm e conheci Imaculada. O meu maior problema é ter abandonado Malcolm aos jogos da Premier League e à esperança vã de encontrar Elisabete no Q-spot. A minha maior ambição é falar em inglês com Imaculada.

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