13 julho 2005

Como persistimos


Será a persistência uma questão de endurance ou de perdurance? Guardamos, através do tempo que passa, um novelo compacto que nos identifica e permite acreditarmo-nos um. Ou somos como o bicho-da-seda, ou melhor como uma Taenia saginata sem escólex, vamos largando anéis inférteis, destinados a secar. As respostas a estas questões são difíceis. Mas a forma com as encaramos cheia de consequências.
Loreta é jovem demais para ser outra coisa que um ser pleno, que veria nesta divagação um sinal mórbido. Lúcia, quando a conheci, era a imagem da perdurancia: na fronteira entre Nelas e o mundo, apontada ao vale glaciar que cruza a serra. Eu só persisto por força dos registos. Sei que fui Heitor, o funcionário dos correios, Simão, o escritor chinês da pequena pensão, porque encontrei as cartas da minha avó, o cavalo de papelão, os mails de Loreta, o caderno de capas vermelhas roubado à Estação de Celas dos CTT. Nenhuma forma de endurance preserva em mim a identidade do miúdo que subiu ao sótão, do homem que foi com a rapariga ao Palácio de gelo e se comoveu ao vê-la calçar os patins, que ficou a olhar para as mãos depois de perceber que Lúcia não voltaria a ligar. Não transporto nada do que fui. Como escrevo, comovo-me ao reler as páginas dos velhos cadernos. Mas a minha comoção é literária. E não é semelhante à que tive ao escrever os factos. Se não enduro nem perduro, é um milagre persistir. Se deixar de escrever, serei plenamente nada.

// foto de André Bonirre

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