30 junho 2005

Li as cartas de amor da minha avó com as mãos sujas de sangue e lixei-me

Quando eu era Simão, morava em casa dos meus avós paternos, uma casa com sótão numa avenida da cidade de C.. Não era bem sótão. Era o que o Rui Pires Cabral chamava ”o terceiro, uma arrecadação com dois pisos que ficava ao fundo do corredor, onde as aranhas pareciam vigiar o que restara da infância dos meus pais e irmãos”(1). Esta arrecadação era um lugar de interdição absoluta. Não me lembro de me dizerem que não devia entrar. Mas eu sabia. Muitas tardes estive sentado na divisão que dava acesso à escada, entretido a esventrar um cavalo de baloiço que se veio a revelar desconsoladamente oco, a decifrar pinturas de parede que contavam uma história tradicional, ou apenas a olhar para o corredor. Mais velho, quando li o Aleph, foi naquela escada que pensei. Mas nunca me aventurava a subi-la. O cavalo, os brinquedos de lata que estavam nessa entrada da arrecadação eram objectos sem passado. O meu pai era um adulto esplêndido, desprovido de infância e nunca me passou pela cabeça que os meus tios perfeitos pudessem ter brincado com cavalos afinal de papelão endurecido. Não tinha nada para descobrir. Não havia, aparentemente, nenhum mistério na minha vida. Tudo era, simplesmente. Até deixar de ser, ferido traiçoeiramente, como o cavalo, pela minha curiosidade sem sentido construtivo.
Quando eu era Simão tive uma parasónia de risco. Acontecia-me levantar de noite, percorrer a casa, tentar abrir a porta que dava para um passagem externa pela qual se acedia à cozinha e a uns jardins suspensos nas traseiras do prédio. Ou então entrar silenciosamente nos quartos dos adultos. Uma noite os meus pais surpreenderam uma criança de face alucinada que dizia em voz monocórdica: Quero uma resposta. Quero uma resposta, por favor.
Levaram-me a um médico que recomendou menos leituras, um copo de leite morno antes de adormecer com uma colher de láudano. Quando a medicação acabou, as noites de levante voltaram. Sempre que adoecia, e podia ser coisa ligeira, era certo que me ia levantar de noite, percorrer a casa, tentar sair para a passagem da cozinha, gradeada sobre um pátio escuro cinco metros abaixo, perguntar, com uma cara de urgência que não reconheciam, loucuras que atribuíam a leituras desajustadas.
Até que um dia pedi para deixarem aberta a porta da arrecadação. Era noite de sonambulismo e queria subir ao sótão. Eles procuraram chamar-me à razão. Que era perigoso, não conhecia sequer a divisória, nunca subira a escada. Mas a minha determinação desarmou-os. Pediram ajuda aos meus avós. O avô calou-se como sucedia sempre que era preciso tomar uma decisão. (Por muito que te custe, Humberto, isto é verdade, ele calou-se, anos a fio viveu e morreu calado, de tal forma que os mais pequenos se espantavam quando o encontravam fora de casa e lhe ouviam a voz, clara como o seu olhar de construtor de relógios). A minha avó achava que não deviam contrariar-se as forças da natureza: os trovões, as enxurradas, os tremores de terra e as paixões verdadeiras. A avó reconhecia na minha deambulação nocturna a força absoluta e ingovernável de um acontecimento natural.
Nessa noite, quando eu era Simão, eles vigiaram-me. E viram como avancei resoluto no corredor, atravessei a primeira sala da arrecadação até à escada interior que levava ao sótão. Só se ouvia a respiração do meu avô, um silvo cada vez mais rápido até o meu pai se virar, lhe tocar levemente no braço e ele respirar de forma mais controlada. Alguém abriu uma luz já eu subia. Em cima percorri os livros empilhados que tinham sido da minha avó, Stefan Zweig à mistura com Jonh Chofer Russo, Madame Delli e os policiais da Vampiro. O Almanaque, O Gato Preto, O Cavaleiro Andante, os livros da Biblioteca Cosmos, Ginástica Sueca, Erico Veríssimo, A Selva de Ferreira de Castro em fascículos atados a cordel. Depois o meu avô gritou:- Não , para aí não. Mas uma vez mais o meu pai lhe pediu silêncio. E viram-me deitar no chão de pinho e rastejar, de uma maneira horrível, contaram eles mais tarde, para um desvão esconso onde estavam as cartas de amor da minha avó, em caixotes, todos marcados com uma morada misteriosa de Viseu: Quinta da Poça das Feiticeiras. Pelo modo como me sentei parecia ser um cliente habitual daquele canto. E na semi escuridão- mas havia feixes de luar que as telhas despejavam sobre as cartas- folheava uma a uma e em algumas deixava as marcas dos dedos ensanguentados pelas falhas de madeira do sobrado.


(1)A citação é do poema O terceiro de Rui Pires Cabral, do livro Longe Da Aldeia, Averno 2005.

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