21 junho 2005

Assim será a minha vida



Quando eu era Heitor difícil era sobreviver à segunda feira. Quando eu era Heitor telefonava muito. Mas à segunda feira não. Partia-se o celular sem que desse conta. Desligado. À espera de uma catástrofe pessoal ou geral, tudo seria possível, de tal forma à segunda feira se acumulavam os sinais da minha desesperança. Quando eu era Heitor o verão era a altura em que enganavam as crianças. Davam-lhes palcos com plateias amáveis, fatos para uma hora, uma bandeira, a fotografia do fundador rodeada de comendas. E diziam-lhes: assim será a tua vida. As crianças espreitam do rabo do olho o pai a filmar , as mães e as avós a aplaudir. Assim será a minha vida, dizem, em inglês, para justificar as aulas que não fazem parte do programa base. E a ciência viva, e as expressões, e a dança jazz. This will be my life (em inglês).
Quando eu era Heitor começava a morrer de manhã e estava pronto às dez e meia, por volta disso. Flor telefonava a essa hora: Estás bem? E eu , de sms, porque falar era impossível àquela hora grave que antecedia a minha morte de segunda feira: Estou morto. E Flor também de sms, consciente de que falar só agravava as coisas: Não estás nada, é segunda de manhã, à tarde já estás melhor. Não me lembrava de que fosse assim. Não me lembrava de ter sobrevivido a nenhuma segunda feira. Todas as boas razões me impeliam para as coisas inanimadas com que me identificava, às segundas feiras, quando era Heitor.

0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial