26 janeiro 2005

Rucahna:o crime


Tinha chegado a este país há pouco tempo. Aquele homem era amigo do Juraan e uma tarde encontrei-o no Cais. Tinha olhos sonhadores e disse-me que conhecia a minha aldeia. Um fim de semana telefonou a convidar para um passeio. No sábado seguinte insistiu. Eu já tinha conseguido este emprego e estava sozinha. O Juraan nunca mais aparecera depois de lhe entregar o dinheiro do contrato. De vez em quando via nas ruas pessoas que me pareciam conhecidas, ou a quem o sol da manhã deixa na cara a mesma mancha. Mas não correspondia a qualquer tentativa de aproximação, se existiam. Quando ele insistiu no convite aceitei e estava contente. Apetecia-me falar a minha língua, ou simplesmente falar sem este esforço de perceber e de ser entendida. O passeio foi agradável. Visitámos umas terras na periferia da cidade mas que parecem já tão diferentes, com camponesas de lenços na cabeça, crianças mal agasalhadas e cães a vaguear. Ele levou-me junto ao rio e foi aí que me atacou. Não precisava de me ter magoado. Achava-o atraente e tinha apreciado a forma como era olhada quando tirei o casaco. Iria deixar que me tocasse. Estava preparada para os lábios dele. Mas agarrou-me como se fosse fugir e nunca tinha sentido na carne uma força muscular assim. Pensei: a mão dele é uma tenaz, e senti o cheiro desagradável do medo e do sexo. Depois ele tropeçou na areia, caiu e quando se levantou tinha uma faca na mão. Ao tentar agarrar-me caiu outra vez. Era quase ridícula a forma como ele caía. Quando se quis levantar vi-lhe a cara e havia, no meio do medo, um brilho de tal ferocidade que me assustou. Acho que peguei na faca caída, me aproximei, o golpeei no pescoço. Nas mãos e no pescoço. Ele continuava caído e ao querer levantar-se caí-lhe de joelhos em cima do peito e golpeei muitas vezes os sítios do pescoço onde se mata. Depois arrastei-o para o rio, as águas afastaram-no antes de ter tido tempo para pensar, para sentir dor, cansaço, arrependimento. Fiquei sentada na margem até vir frio e as minhas mãos se cobrirem de sangue. Ao lavá-las vi que estava outro homem próximo de mim. Conhecia-o. Do cais de Gaia, de uma loja, de um transporte público, de casa da senhora? Conhecia-o. Havia agora um homem morto às minhas mãos boiando nas águas escuras do rio e uma testemunha do meu crime. Limpei as mãos ao lenço do pescoço e afastei-me, à espera de o ouvir chamar. Não aconteceu nada. Nem nestes dois anos que se seguiram. Há um homem que me viu matar e ocultar o crime. Esqueci-me da cara dele. Naquele momento em que a vida se mudou e o tempo rebobinou à minha volta estive muito próxima da identificação. Agora esqueci-me de tudo. Não recordo a tez, a estatura, a cor do cabelo, nenhum sinal particular. Há na cidade um homem que me sabe assassina e não sei sequer de que lado vai chegar.

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