30 novembro 2004

Filho-da-puta

masson, esqueci-me de te mandar um abraço, o tempo não dá para tudo.

Recordações

Estávamos a conversar
e calámo-nos de repente.
Tinha aparecido na esplanada uma rapariga
que beleza!,
demasiado bela
para o nosso tranquilo veraneio ali.

Barbara olhou apressada para o marido.
Cristina pôs instintivamente a mão
sobre a mão de Zbyszek.
Eu pensei: ligo-te,
espera- vou-te dizer- não venhas,
acabam de anunciar vários dias de chuva.

Só Agnieszka, viúva,
saudou a bela com um sorriso.

Wislawa Szymborska


Traduzido do castelhano( por Abel M. Soriano) De Instante, Igitur/poesia, Tarragona, 2004

29 novembro 2004

Adições

O blog de Berna Valada.

Um filme


Italiano para Principiantes, de Lone Scherfig, distribuido pela Atalanta films em 2003, Urso de Prata em Berlim. A cabeleireira, a padeira com minimal brain disfunction, a enfermeira, a empregada de restaurante cheia de fé, o padre que tinha um Maserati, o recepcionista impotente, o professor de italiano. Eu sou da cabeleireira.

Salvação pela fé

Com o Governo em liquefação levantam-se as brisas messiânicas. O cavaquismo para o povo em geral, o marxismo-leninismo para a iurd comunista.

Lopes em Almada

Foi-se Chaves, um bulldozer do santanismo. Lopes reagiu com a elegância das celebridades na Quinta. Esquecido de que estava em Câmaras (ou Salões de Bombeiros) falou para o Partido. Tocou a milésima variante da vitimização: a metáfora do prematuro maltratado. Mas a solidão de Lopes já é trágica.

(post alterado ás 01:45 de 30/11 após recomendação de Marta, com a promessa de nunca mais desrespeitar os Pré Termos)

Provérbio

É da natureza dos moribundos o ódio aos cangalheiros.

28 novembro 2004

Fernando Valle

Iam a caminho da Margaraça e cruzaram com ele em Coja, logo depois da ponte, às nove da manhã. Foram cumprimentá-lo. Ele trocou algumas palavras com eles, inteirou-se do passeio, pediu desculpa por não poder acompanhar e convidou para um chá, em sua casa, se chegássem a horas. Todos os homens morrem e aqueles caminhantes não haviam de chegar a horas. Mas, desobedecendo à prescrição que lhe proíbe mexer no desvão da memória, quer um deles lembrar-se desta história. Era um ano muito antigo do século passado. Alguns meses depois haveria milhões de pessoas nas ruas a celebrar a liberdade. Mas daquele Inverno, só se lembra do frio, do silêncio, da escuridão e do tempo que demorava chegar a Arganil. Havia alguns amigos generosos, uma rapariga cheia de coragem e Leo Férré na rádio a cantar Beaudelaire, que neste país sempre a poesia encontrou frinchas entre a crosta pesada da boçalidade. No Teatro, em Arganil, era quase tudo estudantada vinda de Coimbra, gente sem experiência nem credibilidade. A Pide a mostrar-se. E ele, o dr. Fernando Valle, à espera, calmo, reservado, protector, a sentar-se no palco, a ouvir com atenção. O medo tinha quase tudo nesse ano, mas aquele avô já tinha visto a democracia e dizia que outro país era possível.

Trash

Desgosta-me ver O Mal de Montano entre todos aqueles livros, tão sozinho, tão desprotegido.

Sábado

Ao longo da semana os caminhantes foram-se um a uma desmobilizando, até restarem três, nenhum deles me reconhecendo capacidade de liderança, sentido de orientação e outras qualidades que os fracos pensam necessárias à sobrevivência nas serras. Acordei assim para a cidade num dia que era todo outono, céu cinzento e da Lousã vinham apelos obscenos. Hei-de acabar a caminhar sozinho como o Walser. (Nunca nenhum caminhante solitário se perdeu porque quem caminha sozinho caminha sem destino.) Depois comecei a comprar coisas: os jornais de sábado, livros, roupa. E sentia-me como a avó de Frederico Lourenço: Este fato é para a ópera, no São Carlos. Este casaco para os concertos rock, quando emagrecer. E comprei pulseiras de âmbar e de couro e turmalinas, rubis e safiras com estrelas de seis pontas no interior, mochos de coral, ossos de dinossauro especialmente vindos da China, rosas de espuma, malaquite e lapis lazuli. Comprei tudo ao preço afixado, sem discutir . Encontrei mulheres já com os pesados agasalhos de Inverno e falaram-me de tintas, óleos, crianças mal tratadas e do trabalho que tinham a correr. E todas me pareceram lindas de morrer, com aquele ar intimo que as mulheres têm ao sábado e que felizmente ignoram. Todas me tratavam de um modo digamos, fraternal, de onde toda a sexualidade parecia arredada e no fim beijavam-me ao de leve e eu pensava: é assim que beijam os filhos quando lhes apagam a luz do quarto, embora nem todas tenham filhos e algumas, como a minha mãe, já não lhes apaguem a luz. Tentei reagir e fui à loja de vinhos e comprei um Porto vintage e vinhos a preços absurdos. Mas não me senti diferente. Eu tinha acordado assim:

27 novembro 2004

Corpos especiais

Andam as mentes e corpos ocupados. Rititi está em formação, de Vieira vêm dicas para um rápido escalar, Charlotte não pára em tangos e milongas, Margarida sem vómitos prometeu casar.
No S.A., aqui, é outra dança, ensinam-nos a aplicar a Ciência dos Sistemas de Gestão de Desempenho aos Corpos Especiais, só teoria, corpinhos esbeltos nem vê-los.

André Bonirre

Invasão do espaço

Reputado facilitador de fluxos energéticos humanos, o que fez mirrar o seu brio profissional não foi a parte substantiva das palavras dela, mas o adjectivo herético que escolheu para repelir a mão por dentro da blusa: “páre, está a invadir o meu espaço energético”.

André Bonirre

26 novembro 2004

Au revoir


Vous aussi, vous partez? Ce bleu que vous avez choisi est vraiment une couleur difficile. Je me souviendrai toujours de ce roman que vous avez écrit pendant une année et demi.

Média

Quando entrei na Farmácia para comprar uma escova de dentes a ajudante perguntou:-Hard ou soft? Encontrei-me pela primeira vez a hesitar.– Média, pode ser? e surpreendi-me com a minha escolha. Eles vieram a saber e começaram a desconfiar de mim, quase tanto como eu desconfiava deles. Começou assim a minha falta de “lealdade orgânica” . Acabei cego, como Édipo no deserto, pela maldição de Kundera na Insustentável Leveza do Ser.

Os Poemas Favoritos de Mário Soares, Marcelo, Vasco Gonçalves, Freitas...

Não me interessa. Não quero saber quais são. Por favor não me digam.

BES

-Sei claramente que a nossa relação não tem futuro.
-Perguntaste ao teu psi?
-Não, perguntei ao teu.

Leituras

Já leste hoje o blog rosa cueca ou também estás em alguma formação?

25 novembro 2004

Os Juízes do STJ são homens doentes

Conta-se que "deixou algumas vezes esturricar a comida que confeccionava; chegou a sair e a chegar a casa de noite; ia tomar café a um estabelecimento de cafetaria e não deu conhecimento ao arguido de uma deslocação; chegou a mostrar a barriga quando se encontrava junto de pessoas amigas e se falava da condição física de cada uma delas". Ele estrangulou-a. Os dez juízes do Supremo acharam que esturricar a comida, ir tomar café sem dar conhecimento ao marido, e isto de noite, chegar a mostrar a barriga, tudo isto constitui atenuante importante para o comportamento do homicida. Antes ele já lhe tinha dado uns safanões, uns pontapés, uns socos. Coisa normal, que não motivou procedimento especial. Em casa de operário da construção não se mete a colher. Agora estrangulou-a, tem que ser punido, assim mandam os Códigos. Mas vamos lá a ver as atenuantes. O homem era primário. Os dez juízes do STJ são contumazes ou relapsos, peço desculpa mas não sei o termo técnico da reincidência. São homens doentes e perigosos. As mulheres deles que se cuidem. Pode vir um dia em que a ucraniana falte e elas tenham que estrelar uns ovos ou que percebam que a Burberrys já começou a baixar as cintas. Juiz é burro mas tem olhos.

Sim

A propósito da Quadratura do Círculo de ontem : Uma coisa é a pergunta cretina que os deputados do PSD/PP e do PS elaboraram. Outra é a posição face ao referendo. Outra ainda é a posição relativamente à necessidade de uma Constituição Europeia. Finalmente é importante decidir se é esta a mais adequada. JPP, com a autoridade de ter sido deputado europeu, diz que não é inocentemente que a pergunta é cretina, que é próprio dessa gente tratar-nos assim. Os cretinos somos nós. Infelizmente, há outros a tratar os eleitores como atrasados. Esses, em lugar de discutir a Europa e a Constituição, discutem a pergunta. Eu sou europeu. Gostava de ter sido latino americano, mas sou europeu. Gosto da Europa. Da gente livre da Europa, do eixo franco-alemão, dos povos de Espanha, dos anglo-saxões tão excêntricos, da gente do Norte, brutos, ingénuos, delicados, das cidades orgulhosas do Sul. Não me incomoda nada que um futuro Presidente da União possa, em algumas áreas, ter prerrogativas superiores às do Presidente Sampaio ou de um Herediazinho a vir. Sempre que for Europa voto Sim.

(leia os comentários do Joaquim (Respirar o Mesmo Ar), num ciber café de Évora quase a fechar)

24 novembro 2004

Mortalidade no Iraque depois da invasão




Mortality before and after the 2003 invasion of Iraq: cluster sample survey

Les Roberts, Riyadh Lafta, Richard Garfield, Jamal Khudhairi, Gilbert Burnham


Background In March, 2003, military forces, mainly from the USA and the UK, invaded Iraq. We did a survey to compare mortality during the period of 14•6 months before the invasion with the 17•8 months after it.
Methods A cluster sample survey was undertaken throughout Iraq during September, 2004. 33 clusters of 30 households each were interviewed about household composition, births, and deaths since January, 2002. In those households reporting deaths, the date, cause, and circumstances of violent deaths were recorded. We assessed the relative risk of death associated with the 2003 invasion and occupation by comparing mortality in the 17•8 months after the invasion with the 14•6-month period preceding it.
Findings The risk of death was estimated to be 2•5-fold (95% CI 1•6-4•2) higher after the invasion when compared with the preinvasion period. Two-thirds of all violent deaths were reported in one cluster in the city of Falluja. If we exclude the Falluja data, the risk of death is 1•5-fold (1•1-2•3) higher after the invasion. We estimate that 98000 more deaths than expected (8000-194000) happened after the invasion outside of Falluja and far more if the outlier Falluja cluster is included. The major causes of death before the invasion were myocardial infarction, cerebrovascular accidents, and other chronic disorders whereas after the invasion violence was the primary cause of death. Violent deaths were widespread, reported in 15 of 33 clusters, and were mainly attributed to coalition forces. Most individuals reportedly killed by coalition forces were women and children. The risk of death from violence in the period after the invasion was 58 times higher (95% CI 8•1-419) than in the period before the war.
Interpretation Making conservative assumptions, we think that about 100000 excess deaths, or more have happened since the 2003 invasion of Iraq. Violence accounted for most of the excess deaths and air strikes from coalition forces accounted for most violent deaths. We have shown that collection of public-health information is possible even during periods of extreme violence. Our results need further verification and should lead to changes to reduce non-combatant deaths from air strikes.

Published online October 29, 2004 the lancet

SBP

O Síndrome dos Bloggers Periódicos (posts que ocorrem em intervalos fixos) é raro na blogosfera. Caracteriza-se por posts recorrendo em intervalos de dezoito dias a três meses. Entre os episódios, os bloggers são indivíduos que levam uma vida normal, de perfeita saúde.

23 novembro 2004

Em Jerusalém, do lado da paz e da memória

Ontem, David Grossman, escritor israelita, foi entrevistado aqui. A não perder, por todos os bons motivos.

Metereologia

No ar só o silêncio/ e as últimas folhas/ que foram o Outono. Preparem-se. Vêm aí as chuvas. Vocês vão sofrer, que se alimentam da luz e das cores fortes.

Com um brilhozinho

Em Florença, este fim-de-semana entrei no Palácio dos Congressos, onde se reuniam no seu V Congresso Nacional, os membros da Unione Atei Agnostici Razionalisti. No hall, ao preencher a ficha de inscrição, parei quando devia declarar a minha posição religiosa. Parecendo notar a minha hesitação a secretária disse-me, apontando para uma das alternativas: Siamo brillanti.Quem era eu para discordar. Desde sexta-feira passada que sou brilhante.

O Talismã de CAM

Talismã é o livro de Carlos Alberto Machado na Assírio e Alvim. C.A.M é autor de «Teatro da Cornucópia. As Regras do Jogo» (Lisboa, frenesi, 1999), «Cuidar dos Mortos» (Instituto de Sintra, 1999), «Mundo de Aventuras» (Évora, atægina, 2000), «Ventilador» (Espinho, Elefante Editores, 2000), «Transportes & Mudanças. Três Peças em um Acto» (Lisboa, frenesi, 2000), «Os Nomes que Faltam» (Porto/Lisboa, Cadernos Dramat, Nº 6, Teatro Nacional S. João/Cotovia, 2001), «Mito», seguido de «Palavras Gravadas na Calçada» (Lisboa, & etc, 2001), «Restos. Interiores» (Lisboa, ed. autor, 2002), «Aquitanta» (Lisboa, ed. autor, 2003), «A Realidade Inclinada» (Lisboa, Averno, 2003) e «Aventuras Extraordinárias do Príncipe e do Castor», em colaboração, (Coimbra, Cadernos CITAC, IV, Jan-2004). Foi, com Ana Paula Inácio, um dos «Poetas sem Qualidades» (Lisboa, Averno, 2002) e animou o blogger Campo de Afectos até ao dia 25 de Setembro. Nesse dia atreveu-se a dizer a palavra sarnosa e o seu guardião suspendeu-o deste convívio.

Consistência


Diz o blogger do Relâmpago que há, desde o início, uma consistência na escrita da Natureza do Mal. Fui ver. Já não me lembrava do que tínhamos escrito. Há tempos que estou, nesta questão da identidade, com grande incómodo. Se em noventa dias nos renovamos, da epiderme às células do sangue, como é que somos outros e os mesmos? No meu caso sei a resposta. Não sou. Espanto-me de ainda responder ao nome que me dão. Ouço contar as histórias da infância (a minha Mãe costuma fazê-lo nos almoços do fim de semana e não me lembro de nada, a não ser dessas mesmas histórias, noutros almoços que devem ter sido mais felizes). Tive certezas e devo ter contagiado outros com elas? Peço desculpa às vítimas. Dizem que a acção necessita de gente assim, com convicções, valores, determinação. E que é preciso acção. Para o progresso. Esse eu que fui perdeu-se. Está nas histórias da minha Mãe (embora não tenha a certeza de que a minha Mãe se lembre dos factos ou da narrativas). Também do que escrevi me espanto. O Escritor que publica em todos os Natais diz que não é ele quem escreve na garagem ou em consultórios abandonados. É a sua mão. No meu caso não há mão, nem teclado, nem escrita automática, nem inspiração. As histórias que escrevi foram-me ditadas. Enviadas por mail, sms, pequenas folhas de papel, como suspeitaram sempre os meus amigos mais próximos. Agora calaram-se as Musas Esqueléticas (é verdade. Por mais que tente não entro. Já revi o link. Já tentei entrar pelos links de outros. Pelo google e outros motores de busca. O anúncio do erro é fatal no ecrã. O Bonirre não acreditava e comprovou esta inacessibilidade sem remédio). As minhas Musas não eram bem esqueléticas. Eram louras cheiinhas, bem nutridas. E não eram bem Musas. Simplesmente me limitei a copiar as suas histórias. A ter medo da confiança que me prodigalizavam. Aceitavam o anonimato. Não pediam direitos de autoria. Não protestavam por ligeiras alterações, mais motivadas por incompreensão ortográfica ou gramatical do que por assomo criativo. Mas eu sabia que eram efémeros os favores das Musas. Mesmo quando eram louras, bem nutridas e complacentes. Agora acabou. Perderam o meu mail, estão a mandar as suas vidas de fingir para templates mais agradáveis, outras cores de fundo, melhor aproveitamento das possibilidades do Blogger. Não estou excessivamente triste. Tinha de ser assim. Tudo tem o seu tempo. Assisto a tudo com melancólica tristeza como antes me alegrei com melancolia. Digam-me ao menos os novos links em que publicam. Irei furtivamente, como quem liga a rádio no parking, às terças à tarde, e se afunda no banco do carro para não ser reconhecido.

22 novembro 2004

A minha Psi


A leitura dos jornais de fim de semana é o revelador da minha imparável deliquescência ideológica. A admiração para com VPV deu lugar a uma quase total identificação. Consigo ler Barreto sem esforço. Resisto a ler Helena Matos só porque tenho medo de dar comigo a afixar a coluna dela (a vértebra dela) na parede da sala. Vou antecipar a consulta da psi para as segundas feiras.

Montaigne

A maior causa de perturbação do mundo tem a ver com a gramática.


Michel de Montaigne, in Pequeno Vade-Mécum, organizado por Claude Barousse e traduzido por Luis Leitão para a Antígona, Lisboa 2004

Quase em Português

Pela mão de Nuno Guerreiro chego a Quase em Português, o blog de Lutz. Fico feliz por descobrir estes trilhos.

20 novembro 2004

Vá Você!

"Concorda com a Carta de Direitos Fundamentais, a regra das votações por maioria qualificada e o novo quadro institucional da União Europeia, nos termos constantes da Constituição para a Europa?".

Gengibre lilás

Gengibre Lilás, o blog da Cris. Foi por ele que as caravelas de Lisboa e as naus de Carlos V e os barcos piratas dos Países Baixos e de Inglaterra se bateram. A partir de agora procuraremos os blogs predilectos pela cor. Já leste o blog gengibre lilás? Viste o que diz hoje o verde garrafa? E o que se passa com o amarelo Kill Bill?

Adições

Queermondego, da Cris, do Bruno, do Paulo Jorge e d@s outr@s.

Sábado de manhã

O dia acordou radioso nas padarias e nas piscinas públicas. Mais abaixo, nas livrarias estão lado a lado O Mal de Montano e Austerlitz. O editor da Teorema, orgulhoso, assina a última página de cada edição. O seu orgulho é justificado. Até as capas melhoraram, sem perder aquele ar antigo,disse Austerlitz. O ar antigo adapta-se bem a Sebald e também a Rosario Girondo, pensando bem.

A senhora Wislawa


Hoje, na Babelia (El Pais), a senhora Wislawa Szymborska dá uma entrevista a propósito de tudo, incluindo o lançamento do seu último livro, Instante (tradução em castelhano de Gerardo Beltrán e Abel Murcia Soriano, Igitur, Tarragona, 2004).

Na plateia do Sousa Bastos

A mão da namorada ágil no entrepernas.

No balcão do Tivoli.

A mão do namorado ousando sob a saia.

As mãos dos cegos

Com a pele fina, perfumada, as mãos dos cegos incendeiam as pálpebras.

Uma mão nas Berlengas

A mão que perde a aliança no primeiro Verão e sabe que a perda anuncia a tragédia.

Loreta

As mãos delicadas do Mamute.

Talvez florista

Mãos com espinhos nas falanges e onde inesperadamente espreita um botão de Stella maris.

Mais das mãos

Mãos que uma tarde se apertaram em redor de um copo e se feriram em vinte e três lugares assinalados a carmim.

Excertos de uma Ode

Mãos inchadas da lixívia, gretadas pelo frio das manhãs, quentes dos úberes das vacas nos currais, mãos pintadas pelos frutos das veredas.

19 novembro 2004

Geração Portugal

Nova Força para o Mundo



Grande Luso Pequenino

Pátrio Orgulho do Passado

Jerónimo, a inclinação consensual


Suzana Paiva


Suzana Paiva, fotógrafa de cena, no blog Saudades de Antero, trazida pelo Francisco Amaral, de quem se anuncia na RUC (107.9 FM) a IF, nas noite de domingo para segunda, meia-noite.

Uma pequena alegria nocturna

No debate da rtp 1, O Estado Da Nação, encontrei uma razão para ser de esquerda. O homem trazia um fato azul escuro de riscas finas claras, uma camisa azul de riscas largas e uma gravata azul de bolas azuis.

Mais Inspecção, mais solidariedade

Fiquei contente por ver publicado um relatório da auditoria conduzida pela Inspecção-Geral do Ministério da Segurança Social ao Padre Américo, instituição que acolhe centenas de rapazes . O relatório é altamente crítico e conclui com propostas concretas que vão desde o encerramento à colocação no local de pessoal com preparação especial para acompanhamento. No mesmo jornal um responsável é entrevistado e confrontado com as acusações que rebate. É assim que as condições de existência de milhares de crianças entregues à assistência social pública ou privada devem ser tratadas: transparência, informação, escrutínio. Só dessa forma poderá haver uma opinião pública solidária, mobilizada contra o abandono e pela reinserção. Um jornalista não entende assim, e, numa coluna de opinião, avança com uma peça demagógica cuja principal finalidade parece ser descridibilizar o relatório e a Inspecção. Um mau serviço prestado às crianças do Gaiato e de outras instituições semi penais, onde as crianças abandonadas aprendem, na escuridão, o seu lugar de deserdados.

18 novembro 2004

Princípio de uma Ode

Mãos das mulheres manchadas pelo anidridohexafluorpropiónico, o metanol, o acetato de etilo, a piridina (...).

Madam Margaret

Margaret Hassan. Ao serviço da Care International, no Iraque. Denunciando desde 1991 os efeitos da guerra e do embargo. Alertando para a catástrofe humanitária que a intervenção armada poderia agravar. Não abandonou o país e continuou a fazer muito mais do que era exigível. A turba de crianças que a rodeava chamava-lhe Madam Margaret. Que nome lhe deram os raptores que a obrigaram a gravar apelos lancinantes aos MP's britânicos e provávelmente a mataram, em Faluja.

Desmentido

Não é verdade que goste de todas as mulheres.

De manhã

Há algum tempo que deixou de cheirar a torradas pela manhã. Um erro sistemático impede-me a entrada nas Musas Esqueléticas. O rapaz da Tasca deixou mesmo de escrever. Será que o Joaquim já voltou?

No dique, mais à frente

Pedalando no dique encontrei, num lugar a que chamavam Amersfoort, dois homens à conversa. À minha passagem fizeram um sinal amistoso e eu deti-me por momemtos. Não manifestaram surpresa pela singular condição em que me encontrava, depois do confronto com os meus perseguidores. Disseram chamar-se Monne e Wijnkoof . Monne era um homem de singular nobreza.

Contou-me que planeara a maior parte dos bairros da cidade de A. , quando as bicicletas se generalizaram entre os seus habitantes e estes puderam ir habitar bairros mais afastados das fábricas. Monne era social democrata e o seu nome verdadeiro Rodrigues de Miranda. Solomon Rodrigues de Miranda, de uma família fugida da Iberia. Quando os alemães entraram na Holanda, Monne, vinte anos à frente do pelouro de Obras Públicas da cidade de A., foi afastado de qualquer actividade pública. Depois entregou todo o recheio da sua casa a funcionários holandeses que, sob a supervisão dos ocupantes, catalogaram os bens e os levaram para um depósito da cidade de A. Depois teve de deixar a moradia e partilhar com outras famílias um quarto distribuído pelas novas autoridades. Mais tarde prenderam-no e levaram-no para o campo de Amersfoort, próximo da cidade de A., junto ao local onde nos encontravamos.

O que Monne me contou sobre o campo não pode ser confirmado. Na retirada os alemães destruiram todos os documentos.

Quando lhe perguntei onde viviam agora, ele e o companheiro que assistira em silêncio ao relato que procurei resumir, apontou para o canal que acompanha o dique e depois parece iniciar um labirinto de àgua ligando este polder a todos os polders do Zuiderzeewerken, e disse-me uma frase que reconheci como a frase do narrador de Austerlitz, de Sebald, num dos poucos momentos em que não é Austerlitz quem diz.
Por aqui, e com um gesto apontava para a linha que divide o lado da vida corrente do seu inimaginável contrário.

17 novembro 2004

Terra Prometida

Desculpem, já foi o congresso? Perceberam o que disse Cunhal ou foi preciso pedir a interpretação do Pacheco Pereira? Já entronizaram o operário Jerónimo? Oh, mantenham os cães afastados...

The Waste Land

Desculpem, já foi o Congresso? A faena murcha dos senõritos satisfechos que treparam lestos desde o Julho sampaísta ainda fura? Já Pedro é só uma saudade de Vanessa? Oh keep the Dog far hence, that's friend to men, or with his nails he'll dig it up again!

16 novembro 2004

Pedalando no dique

Estava um dia assim na cidade de A . Procurava a paz na natureza, bendita prescrição. Vinha do Norte um ar limpo e eu ia de bicicleta pelas ruas de Oods. Perto de uma escola encontrei três miúdos, de quinze anos, disseram. Parei e eles mostraram-se surpreendidos mas colaborantes. Eram holandeses muçulmanos. Queria saber o que pensavam da morte, quero dizer, do esfaqueamento, agressão a tiro e decapitação de van Gogh. Van Gogh? , riram-se. Não sabíamos que o tipo ainda estava vivo. E depois mais a sério: Há um milhão de muçulmanos na Holanda, sabe? Quem se mete com um milhão de pessoas arrisca-se a que um deles se exceda.

Os miúdos continuaram no caminho para a escola pública holandesa e eu no meu passeio. Vinha atrás de mim um grupo de ciclistas. Quantos eram? Não me virava e não tinha reflector. Mas sentia o zumbido da sua perseguição. Também eu me tenho metido com gente a mais. Talvez alguns leiam. Talvez alguém leia por eles. O matador não lê, executa ordens. Leram os Versículos Satânicos os ayatholas que assinaram a fatya contra Rushdie. Os juízes do Santo Tribunal que empurraram Bruno às chamas de Campo di Fiori, esses ao menos, sabiam que o mundo é infinito e sem centro. O obscuro imã da garagem holandesa onde a execução de Theo van Gogh foi assinada viu o corpo das mulheres onde o Islão escreve a sangue a sua lei.

Assim ia pensando quando já fora da cidade de A . pedalava pela margem elevada de um polder. As sombras dos meus perseguidores alongavam-se nas terras ensopadas. E continuava a pensar em quantos ofendi, uns sem o saber, outros com premeditação e contumácia. Faltei a todos os encontros. Esqueci-me das senhas. Não identifiquei o inimigo principal e confraternizei com os inimigos secundários. O bichinho da dúvida toldou-me as certezas. Chorei na morte dos ditadores, esquecido das vítimas. Aplaudi por equivoco. Não ouvi um amigo que chamava baixinho. Nunca soube como respirava quem ao meu lado dormia docemente. Não dei agasalho aos filhos nestes Invernos e foi quase sempre Inverno. Esqueci-me de perguntar ao meu pai a terra que queria por sepultura. Não sorri como devia à florista. Quis ser muitos e deixei-me ao desamparo.

Quero ver os meus perseguidores de frente. Má sorte vir acabar nos Países Baixos. Outro que me enganou assegurara que era aqui tudo calma, luxo e volúpia. Vejo-os aproximarem-se. O senhor careca que um dia me meteu na mala do Mercedes, o namorado distante de Loreta, o patrão da rapariga que talvez seja Florista. Vai começar o festim. Quem se mete com tanta gente arrisca-se, ou como disse o juiz à mulher violada, estavas a pedi-las.

13 novembro 2004

Em louvor da cidade de A., aa noite

Ha no mundo
um sitio de grande amenidade,
que o diga Spinoza,
onde aa noite as mulheres passam,
velozes,
e trazem o alto peito
iluminado.

11 novembro 2004

Na morte do palestiniano

Era um homem com a pátria ocupada. Teve de fugir do Líbano aquando de uma grande matança de que o mundo civilizado e os seus irmãos árabes foram cúmplices e onde se forjaram os terroristas de hoje. Viveu na escuridão de uma antiga prisão colonial britânica. Foi-lhe negado o chão de Jerusalém por sepultura. Também o nosso Afonso Henriques foi brutal, Charles Magne impiedoso, Artur só se comoveu com Guinevere. O ministro da Justiça de Israel disse na sua morte que desaparecia um obstáculo à paz na região. Não sei se é verdade, mas seguramente que a frase se lhe aplica por inteiro a ele, de quem ninguém decorará o nome. Dawkins escreveu um dia que um relativista cultural era um hipócrita e não sei bem se o que sinto é justo. Em Ramallah, o que a Alexandra sentir estará certo.

10 novembro 2004

Números

Da manifestação de hoje no Porto levada a cabo pela CGTP dizia uma jornalista que reunia 10. 000 pessoas, números avançados ao mesmo tempo pelos organizadores e pela Polícia. Na história das manifestações não há memória de tal sucesso: a Polícia e os promotores coincidem. Levantam-se algumas explicações para esta facto: 1. Polícia e CGTP partilham agora a Assessoria de imagem e o instrumento para contar os manifestantes. 2. A CGTP levou a cabo uma acção de formação destinada a corrigir "visões triunfalistas que tanto têm prejudicado a luta dos trabalhadores" que começa a dar os primeiros resultados. 3.A Polícia está activamente empenhada numa cabala para derrubar o Governo e decidiu aplicar aos manifestantes um princípio até aqui desconhecido da corporação: um homem, um manifestante. 4. Trata-se daquilo a que os socioanalistas têm chamado de síndrome de Wraclow, que aproxima o cacete da cabeça caceteada. Lembrar que a Polícia tem esta semana marcada uma manifestação com objectivos próximos dos da CGTP.

Da obrigação da denúncia

Não gosto de falar aqui em temas relacionados com o meu cousin Germain. Mas o comentário de Pedro Caeiro, no Mar Salgado é para ler com atenção. Aqui fica o link.

Período expulsivo

Houve um dia em que dei conta que ele deixara de me tocar. Nem eu gostava da mulher em que me tornara. Inchada, tudo em mim estava lento e sem graça. Quando me deitava tinha de estar de lado, na cama. O lado dele era sempre o outro.
Se assim me transformara era normal que ele me tivesse perdido. Ou se sentisse desiludido na minha metamorfose.
Tentei pensar nas fantasias dele, nos horrores dos sótãos masculinos. Será que via a mãezinha. Ou alguma coisa ancestral lhe segredava que o filho podia não ser dele. Ou tinha ciúmes do menino. Ou regressava nele o próprio pai abandonador.
Não tinha ninguém a quem falar deste desamparo. Não era tempo de denunciar o meu insucesso. Não sabia o que me estava a acontecer, mas algo me segredava que era coisa séria. Desagradava-me confessar que estava ali, encharcada em progesterona, com um puto a crescer-me por dentro, e eu, sozinha naquela história.
O fim da gravidez veio depressa. Estive no parto como nos últimos meses. Também não precisava de ninguém. Só tinha de ter confiança naquela gente que ensinava a respirar, fazer força ou estar quieta.
Quando o bebé já mamara e adormecera, entrou ele. Levantou os lençóis para lhe descobrir a cara, não lhe tocou, deve ter sorrido. Eu estava ao lado, estupidamente à espera. De expulsar outra vez os restos, da ressurreição, dos lábios dele. Era outra vez eu. Com o miúdo ao lado, ainda inchada, a pele escurecida, as mamas da Britney Spears, mas eu. E aí tive a certeza de que aquele cabrão já não gostava de mim, não acordaria ao choro do miúdo, não o veria crescer, não o levaria à escola. Quando ele saiu chorei, de raiva, medo de ser toda a vida atormentada por uma cara que se lhe parecesse e finalmente de alívio pelo fim de um martírio.

Relato de Terça feira à tarde

Ontem na 2, e em Ramallah, Herberto Helder.
Os Animais Carnívoros

I

Dava pelo nome muito estrangeiro de Amor, era preciso chamá-lo sem voz - difundia uma colorida multiplicação de mãos, e aparecia depois todo nu escutando-se a si mesmo, e fazia de estátua durante um parque inteiro, de repente voltava-se e acontecera um crime, os jornais diziam, ele vinha em estado completo de fotografia embriagada, descobria-se sangue, a vítima caminhava com uma pêra na mão, a boca estava impressa na doçura intransponível da pêra, e depois já se não sabia o que fazer, ele era belo muito, daquela espécie de beleza repentina e urgente, inspirava a mais terrível acção do louvor, mas vinha comer às nossas mãos, e bastava que tivéssemos muito silêncio para isso, e então os dias cruzavam-se uns pelos outros e no meio habitava uma montanha intensa, e mais tarde às noites trocavam-se e no meio o que existia agora era uma plantação de espelhos, o Amor aparecia e desaparecia em todos eles, e tínhamos de ficar imóveis e sem compreender, porque ele era uma criança assassina e andava pela terra com as suas camisas brancas abertas, as suas camisas negras e vermelhas todas desabotoadas.

Herberto Helder, Poesia Toda, 1979, Assírio & Alvim

Ah valentes

Cento e cinquenta mil soldados americanos entraram na cidade iraquiana de F. Dois morreram. Do lado da resistência iraquiana houve entre dois a cinco mil mortos.
(do noticiário da noite)

Ramallah


A gora,
l embro-vos,
e xiste uma
x ácara
a rmada com as cores
n avegáveis da paz,
d iariamente, uma
r azão para ir
a Ramallah

09 novembro 2004

Altas expectativas

Quando estou algum tempo sem abrir a blogosfera e regresso à Natureza do Mal, faço-o sempre com algum alvoroço. À espera de um comentário vosso, do regresso do Bonirre, de um texto da Sofia ou de que eu próprio, quiçá, tenha postado na minha ausência. Mas nada, nada.

Hoje, terça feira, mas em Ramallah

Alexandra Lucas Coelho em Ramallah. Descobrindo o que existe entre Deus e o Estado, essa impossibilidade tão necessária. A ler, ontem, no Público.

Theo, um blogger assassinado

A morte de Theo Van Gogh, o sobrinho bisneto de Vincent ou simplesmente o bisneto de Theo, o das cartas, ou apenas o Theo realizador de Amsterdam, o autor de Submissão, é uma morte que me atormenta especialmente. Dizem-me que não, que foi muito e bem noticiada. Pois eu acho que há um grande silêncio sobre esta morte. Um silêncio tão mortal como a condenação que um ayatollah proferiu numa cave de culto em Amsterdam, como as punhaladas que um fiel alucinado por um baptismo de sangue desferiu, como as balas despejadas que os cúmplices carregaram. Agradeço à Espuma o seu post de cor.

A Tasca Continua

No sábado, quando cheguei ao almoço de família e se fizeram as contas à semana houve um que disse com voz funda: Parece que acabou A Tasca. E houve um grande silêncio, talvez alguém que não devia se tenha engasgado. O Jamiroo deixou de escrever, ainda ouvi. Fui lá e era verdade. Num instante perdemos três ou mais blogs. Era o dia em que o Zé Mário festejava mais de 5 000 entradas e a lusa blogosfera 60 000 leitores. Mas se tu deixares de escrever, Jamiroo, isto perde a piada.

08 novembro 2004

Coincidência

Acho que devo contar o que se passou entre mim e I. Hoje, 8 de Novembro de 2004, a probabilidade de I. ler este blog é mínima. Aliás é mínima a probalidade de acontecer algo na vida de I., hoje. Conheci-a numa cidade do sul da Alemanha, com uma ferida no centro para lembrar uma noite de braseiro. I. era muito nova mas trazia consigo a memória da cidade. Tinha um conjunto de pequenos pontos entre as sobrancelhas, tão ordenado como uma tatuagem ou uma cosmética hindu. Disse-me que era uma sinal de nascimento e passei sempre a ver o seu belo rosto com o símbolo da devastação que atingira a sua cidade. Deve ter tido piedade do meu olhar de emigrante sem casa e aproximou-se de mim. Falava-lhe num alemão infantil e tinha que estar muito atento ao que ela dizia, como no Gabinete de Estrangeiros onde ia todos os meses, ou no Instituto de Cálculos e Medições onde era bolseiro. Correu tão bem o nosso primeiro encontro que me espantei que ela não quisesse prolongá-lo. Mas ignorava tudo dela e presumi que tivesse afazeres inadiáveis. De facto, percebi mais tarde, aquele dia em que nos encontrámos na Praça V., era o dia 10 de janeiro do primeiro ano deste século, capicua perfeita. I. tinha muito medo desses dias, dito de modo mais directo, de se apaixonar em dias desses, por homens que não a mereciam, como era claramente o meu caso. Uns dias depois, numa data desprestigiada da sua tabela, beijou-me e foi surpreendente. Encontrávamo-nos, em semi clandestinidade, no apartamento de uma tia onde ela tinha um estúdio. Um dia a senhora voltou mais cedo do que prevíramos e ela ficou imóvel na cama. Como me espantasse, revelou-me que só se levantava às 5:15h, e faltavam três minutos. Quando ela percebeu o meu mau carácter quis despachar-me. Mas não era capaz. Até que uma manhã, recebi um telefonema no Instituto, o que era contra os regulamentos e só podia acontecer por motivos excepcionais. Era ela. Disse-me que era a última vez que me falava. Tinha um calendário em frente. Era o fatídico dia 20 de fevereiro de 2002. Olhei para o relógio: dez horas e um minuto. Tentei argumentar alguns segundos mas ela desligou e eu sabia que a minha condenação era já sem recurso.

Before Sunset


Tinham-se encontrado há dez anos no interrail. Separaram-se e sabiamente não trocaram endereços. Mas combinaram um encontro em Viena, no Natal desse ano. Ela faltou, ele diz que esteve lá. Ele escreveu um livro sobre esse encontro de um dia. Escreveu para ser famoso, ganhar dinheiro mas sobretudo para que ela o lesse. Para a reencontrar, para ser amado, o mais nobre dos motivos para escrever. Casou-se, tem um filho, é feliz nas entrevistas. Ela trabalha numa ONG, e vive sozinha num pátio de Paris. Tem um namorado que é caixeiro viajante.
Encontraram-se no périplo europeu em que ele promove o seu livro, um pequeno e improvável best-seller. O encontro decorre entre a livraria do cais do Sena onde a editora fez uma pequena sessão de lançamento e a casa dela. Falam. Sobretudo ela. Dizem coisas banais, ou não tão banais como isso. Falam, e é tão importante falar. Podiam não dizer nada, parler sans avoir rien à dire, e isso bastaria. Mas estes dizem coisas importantes. Em Austerlitz, de Sebald, Jacques Austerlitz, perseguido pela memória de uma Europa onde os sinais de uma matança recente se tornaram para ele iniludíveis, pode ser salvo pelo amor de uma mulher, Marie, que o leva a Marienbad . Porque é que vejo os teus lábios abrir-se como para dizer qualquer coisa, talvez mesmo gritar, e depois não dizes nada? interroga-o ela. E no regresso, Marie ia falando para si própria, a meia-voz enquanto ele sabia que por sua culpa, a tinha perdido para sempre.Além de um diálogo de amor e sobre o amor o filme é também um longo bailado nupcial, um brilhante repositório dos sorrisos e da linguagem corporal a que os etólogos chamariam copulatória.
O tema é romântico. Mas o amor romântico é capaz de não ser uma invenção cultural como levianamente defendi por aqui. Helen Fisher, por exemplo, em Anatomy of Love, a natural history of mating, marriage and why we stray, cita uma investigação sobre 186 culturas e afirma que elementos do amor romântico estavam presentes em 86 % delas.(esta evid~encia é de grau baixo mas é a que tenho disponível de momento).
No conto A mulher da estação de gasolina , de Bernard Schlink, um homem, europeu de classe média, abandona a mulher com quem vive, quando numas férias atravessam o Oregan, por julgar ter reconhecido a mulher de um sonho que lhe assombra a vida.
O filme recria essa fantasia. Algures, numa viagem da juventude, numa estação de comboios entre duas cidades, deixámos ficar o amor da nossa vida, o verdadeiro.

PS: Os críticos de cinema do Público e do Expresso, dois jornais que leio, não gostam de cinema. Deve ser horrível dedicar uma vida a algo de que se não gosta.

07 novembro 2004

Vila-Matas, Sebald e Walser

Queria falar de W.G. Sebald e de Vila-Matas. No Mal de Montano (Teorema, nas bancas esta semana) Vila-Matas, ou Rosário Girondo, fala de Sebald por quatro vezes. Uma delas a propósito da sua morte, sexta-feira catorze de Dezembro, "parecia sempre recém-chegado de outra época: um homem ligeiramente antigo que, à vista de paisagens solitárias, deparava com vestígios de um passado em ruínas que o remetia para a totalidade do mundo.” Outra para lembrar um fragmento de Vertigem, em que "o passado, todo o passado, sem precisar de cartão de visita, sem que o invoquemos, está aí, oferecendo-se no presente. É emocionante, e aterrorizador.”
A primeira é uma breve citação, no início do seu Dicionário do tímido amor à vida, a segunda parte de O mal de Montano. Rosário Girondo, talvez o pai de Montano, narrador de Bartleby e Cª, reconhece, com W.G. Sebald, a necessidade do autor mostrar os seus trunfos e enumera vários diaristas. Um deles é Sérgio Pitol. Em 23 de Agosto de 1973, Pitol autografou um exemplar do seu livro El tañido de una flauta, que ofereceu a Vila-matas / Rosário Girondo. Sem que entretanto se tivessem voltado a escrever, o narrador de O mal de Montano, recebeu uma carta de Pitol datada de 23 de Agosto de 1993, exactamente vinte anos depois. Quando se viu confrontado com tal coincidência, Pitol respondeu nervosamente: "Algo debió pasar, eso seguro.”
Nessa manhã o narrador de Montano leu uma entrevista de Sebald no El Pais (trata-se provavelmente da entrevista de W.G. Sebald a Babelia e que seria a sua última entrevista). Aí refere que existe uma razão autobiográfica para a homenagem que presta a Robert Walser. O avô de Sebald morreu no mesmo dia que Walser, a manhã do Natal de 1956, também quando passeava sozinho nos campos cobertos de neve de uma aldeia, Wertach, muito próximo do hospício em que Walser viveu os últimos longos anos da sua vida.
E Vila-Matas conclui: alguma coisa se está a passar, isso é seguro. Talvez as ideias casuais de tanta gente incerta, as intuições de tanto zé ninguém, as inquietações de cada um, dos vivos e dos mortos. Talvez algum dia com fluido abstracto e impossível substancia, formem um Deus ou um tecido novo e com a luz de outra vida ocupem o mundo.

Setas

Alexandra Barreto, uma das diaristas que leio com atenção e que tenho a felicidade de ver numa Comunidade de Leitores do Porto, anotou, como agenda de fim-de-semana: escrever sobre Juan Rulfo, Pedro Páramo , os livros Como se Bosch Tivesse Enlouquecido, de A. M. Pires Cabral, e Aracne, de António Franco Alexandre… Essa preciosa declaração de intenções quase que prescinde da sua continuação. Nós facilmente adivinhamos Alexandra a ler Juan Rulfo ou com a capa negra de Aracne. Compramos Pires Cabral e ao lê-lo partilhamos com ela alegrias e desilusões. Era isso, sobretudo, o que devíamos fazer aqui. Falar das nossas agendas, deixar apontamentos, reflexões, projectos, trilhos, locais de passagem.

Adições


Um dos mistérios que nunca resolvemos: como agomes se transforma em galinhola no Epicentro. Estávamos à espera de uma pista no dia de aniversário. A receita do bolo de arroz era perfeita.

05 novembro 2004

W. G. Sebald


À revelia da prescrição da minha psi trago Austerlitz na mochila. E assim não me pude concentrar plenamente na minha existência presente. Bem tratei de fazer o exercício de Caeiro. Vou sempre dar a um sítio que bem pode ser a Liverpool station de antes da remodelação. Há cadáveres demais por cada metro quadrado que piso.

Il Castello di Elsinore

Revista semestral de teatro (elsinore@cisi.unito.it, Universidade de Torino) assinala o xvii aniversário com uma revisita ao seu manifesto inicial. Se antes o programa era o confronto com o fantasma paterno agora, fiel às origens, o trabalho é mais o do reconhecimento da própria identidade.

04 novembro 2004

A Janela Indiscreta

Os que me conhecem (e a Cristina conhece-me) sabem que não sou dado à exteriorização de emoções. Mas eu gostei da casa deles. Havia sempre qualquer coisa para aprender: o cinema, a música, a literatura. Gente discreta, atenta a outras vozes, onde também o silêncio era possível. Agora foram-se embora como vieram, sem saber porquê. Também gosto dessa forma de partir. Aliás tudo neles bate certo comigo. Virão em posts penados, diz a Zazie. Mas é o que eu faço há tanto tempo. Só não há fim para o lamento mudo.

Canções à noite

Scalinata della Trinitá dei Monti, à meia noite. As escadas estão cheias de gente. Aqui e ali há grupos de rapazes dos subúrbios ou que vieram a Roma aproveitando o feriado. Está um calor de monção e parece que vai acontecer qualquer coisa. É então que um grupo de rapazes começa a cantar baixinho. Os outros alegram-se. Quando um grupo acaba outro recomeça. Os que não sabem cantam para dentro. Os olhos estão iluminados como os olhos dos coristas fervorosos. Que cantam os rapazes? As canções que sabem, os cânticos dos estádios de futebol. Vem a polícia e manda-os calar. Eles obedecem, como os garotos das escolas. Levantam-se e debandam para as ruas escuras.

Leituras em dia

Manda a justiça que louve mon cousin Germain. Ao saber que uma rapariga foi perseguida com base em documentos do seu processo clínico, fornecidas pela directora de um Serviço hospitalar, mon cousin Germain, diz o jornal, revelou que ia abrir um processo à denunciante. Fornecer à polícia elementos confidenciais de um processo clínico, obtidos através de consulta ou exame médico, além do mais em prejuízo do doente, é punido pelo Código deontológico, que tem força de lei. Outra questão é: não será crime induzir alguém na violação de um dever deontológico? A médica denunciante e o polícia que investiga este crime estão bem um para o outro.
Surpreendentemente, leio, escrito por punho de quem me habituei a concordar, que enquanto a lei existe é para se cumprir, em nome da democracia e do dever das minorias se conformarem com as leis injustas enquanto duram. Talvez seja assim. Mas os magistrados que mandaram investigar e os polícias que investigaram e “obtiveram a confissão” da rapariga, o enfermeiro e a médica que a denunciaram, pertencem a um mundo onde não quero viver. Reconforta-me saber que na administração da justiça estava uma juíza sábia e agora que escrevo isto parece-me ouvir a tua gargalhada, José Manuel Pinto dos Santos. Enquanto ela soar a rapariga anónima não será mal tratada no tribunal.

A Necessidade da Arte

Já se conheceram todos. Agora jantam de vez em quando e deixaram de escrever nos blogs.

Deus existe (correcção)

E nem o voto postal foi preciso para que, por mais quatro anos, the bravness of America seja a paz do mundo.

03 novembro 2004

18a Dinastia

Vou enganando Anubis
(com os atributos de Hermes)
e para te comover
digo baixinho o teu nome
Arsinoé
até ao quarto de hotel.

Deixo à porta
os vasos canopicos
com as visceras cansadas
para ser so musculo e nervo
para ti
Arsinoé.

Deus existe

Mas é preciso aguardar o voto postal.

Da Roma

Fechar a TV, desligar o telemovel e ficar à espera de que um brado na noite anunciasse a partida de Bush. Mas foi o silencio até de madrugada.