10 outubro 2004

Adormecer

Quando cheguei ao pé da mulher que me disse chamar-se Loreta, na grande sala dos pequenos almoços do hotel da Lexington Av. em L., sabia que seria posto à prova. Fingira-me adormecido no quarto, quando ela acordou . Respirei lentamente, exagerando a expiração, com algumas pausas longas. Eu sei fazer de morto desde que li o russo que escreveu faz de morto, morre e ressuscita, qualquer coisa assim. Ela tocou-me com as pontas dos dedos na cara e nos cabelos. Não era particularmente agradável. Mas não podia acordar. Fazer sexo não é a maior das intimidades. Íntimo mesmo é estar sentado num sofá, lado a lado, a ver filmes ingleses com a Emma Thompson no papel principal. É andar de mota e sentir os joelhos dela nos quadris, a face interna das coxas, cabedal com cabedal. Íntimo é estar na cama a falar, depois do sexo, sem a urgência do sexo. Eu tinha resistido a essa intimidade. Bastara-me dormir com ela no rescaldo do Congresso de Antropologia, na cidade de L. Agradou-me tudo nela: não ser da minha área científica- estou farto de antropólogos culturais- não ser falante da meu grupo linguístico. Ter um sorriso enigmático, um olhar oblíquo, ser muito magra e supersticiosa. As mulheres do Mediterrâneo são assim. Religiosas. Devotas. Facilmente as imaginamos na missa, numa procissão, ajoelhadas aos pés de um altar. O nome dela é perfeito. Um nome magro, musical, cheio de vogais. Para o dizer, enrolo a língua. Sempre que o digo ela ri-se. E riu-se muitas vezes na noite de ontem. Antes e depois do champagne. Na rua, ela simulou um incómodo num pé para se apoiar no meu braço. Veio para o meu quarto, como se se tivesse enganado no andar, e simulou surpresa ao perceber que era eu quem abria a porta. Depois teve medo, ou hesitou. Mas estava avisado para com as mulheres do Sul e sei que elas precisam de muito tempo e de muito paciência, que para elas foder é qualquer coisa de transcendente. De sagrado. Não sei nada disso, nunca aprofundei. Mas sei esperar e tinha todo o tempo para esperar. O desejo dela parecia uma maré, dizia coisas na língua dela e acho que me portei bem, ela gostou. Depois era importante adormecer. Não ser avaliado. Escapar ao impiedoso escrutínio das mulheres depois do sexo. Adormecer.

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