21 agosto 2004

Quase nada

O senhor F. é o porteiro da repartição onde trabalho. Sabe abrir as portas com gestos largos, teatrais, ou tornar-se invisível. Os bons dias do senhor F., o seu olhar atento, cúmplice, fazem parte do meu bem estar matinal. Às oito da manhã o senhor F. antecipa-se a todos os noticiários. Até porque a sua agenda é outra. O senhor F. é especializado em pequenos acontecimentos insignificantes. Notícias de um pardal que ele alimenta. Previsões metereológicas. Informações sobre o parque automóvel dos funcionários. Notícias da família devastada por doenças incuráveis. Ou pequenos pedidos para a namorada, ou para um primo. Um dia o senhor F. segurou-me no braço e exclamou: - Que chapéu, senhor L.! É um chapéu inglês de certeza. Eu assegurei-lhe que o chapéu era austríaco e não inglês, com medo dessa precisão diminuir o seu apreço. Como ele continuasse a cobiçar o chapéu tive um acesso de generosidade e dei-lho:- Faça favor senhor Fagundes. O chapéu é seu . Este e outros episódios reforçaram a estima do senhor F. e o enfase da sua saudação matinal.
Quando foi que lhe não notei o brilho habitual. Ou era eu que estava cansado, distraído e não era capaz de corresponder ao seu cuidado? Continuou assim até ser indisfarçável. O decaimento da nossa amizade foi imperceptível. Hoje saudamo-nos sem cruzar os olhos. A saudação não remete para coisa nenhuma, ele não me quer dizer nada, o seu bom dia não conta na minha manhã. O senhor F., porteiro, cumprimenta o funcionário L. à entrada da Repartição. E é tudo. Em que momento é que isto começou? Que coisa horrível lhe aconteceu sem que eu tivesse conhecimento? Que mudança da sua vida não perguntei sequer. Em tudo na vida é assim. A rosa e o seu verme. A diferença entre o que se passa nesta amizade de bons dias, que é quase nada, e no amor, que é quase tudo, é ...quase nada.

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