15 julho 2004

A lagarta (cont.)

Hesitei em escrever-lhe e nem sei bem porque o faço. Fiquei surpreendida quando uma amiga me disse que a minha lagarta andava nos blogs. Quando fui ler, facilmente cheguei a si. Não gostei. Roubou-me qualquer coisa que não lhe quis dar. E não foi bem a lagarta. Li de novo e percebi que o que escreveu está cheio de falsidades e imprecisões. A minha amiga disse-me que era semi-ficção e que o blog é um lugar semi-privado. Mas esta minha amiga deu ultimamente para me confortar muito, e nem sempre com a verdade. Ainda com a confusão por assentar, decidi escrever-lhe. Envio o mail para a sua empresa, com o seu nome. Ficará tudo assim no domínio semi público.
Começo por dizer como é que o identifiquei. Quando me visitou a última vez, a lagarta estava ainda muito recente em mim. Apesar disso não me queixei. Foi você quem insinuou uma qualquer sombra nos meus olhos. Fê-lo enquanto eu conferia, no computador, a nota de encomenda da sua firma. Respondi-lhe que não era tristeza, era uma lagarta. E você interessou-se. Percebo agora que a sua solicitude é literária. E que, sendo a literatura a maior das mentiras, você tem de estar no centro dos seus relatos. No lugar da lagarta nos meus olhos, ou onde ela se projecta, no meu cérebro. Como sabe, esta última parte não aconteceu. Não me lembro da sua cara com precisão e seria demasiada má fortuna juntar uma cara indefinida a uma lagarta translúcida. Você foi o mínimo que me aconteceu nos últimos seis meses.
Agora, e esta é a parte que talvez lhe interesse do meu relato, vou dizer-lhe o que se passou entretanto. Nestes quase trinta dias que passaram – aproveito para lhe lembrar que termina o prazo de pagamento da encomenda- depois de ir ao primeiro especialista fui a uma segunda opinião. E agora, no princípio desta semana, descontente com a fatalidade da lagarta, resolvi ir a outro. Confirmou que não era retina, que era do vítreo e desinteressou-se completamente do sintoma e do equipamento com que espreitava, para me olhar nos olhos, directamente. Esse afastamento aliviou-me. Sou agora uma veterana em exames do olho e a proximidade do examinador perturba-me. Tenho de me concentrar para não dar um beijo no homem. A minha amiga disse-me que não era perversão, era um impulso daqueles parecidos com os que as mães têm, aquela vertigem de atirar os filhos da varanda abaixo. Quer dizer, coisas que não se realizam e surgem sabe-se lá de onde. Mas voltando ao meu relato. O médico olhava-me nos olhos com ar preocupado, profissional. O que é que se passa, doutor? E ele confirmou que se estava nas tintas para o vítreo, o diagnóstico e o prognóstico estavam bem feitos, qualquer oftalmologista o faria, que estava era preocupado com o que estava a ver. E pegou-me no queixo rodando-me para um espelho. No olho esquerdo, a minha pálpebra inferior, parecia uma asa de borboleta a tremer. Um espanto. Vinte e tal batimentos por segundo, uma competência desconhecida. Primeiro pensei que era a transformação da lagarta. Mas não. A lagarta continuava nos sítios imprecisos do costume. Além dela havia agora, tremulando na minha pálpebra, uma borboleta ou uma asa dela. O médico respondeu às minhas perguntas com um misto de profissionalismo e zombeteria que me desagradou. Que eram espasmos da pálpebra. E a palavra espasmo deve tê-lo inspirado porque me perguntou se eu era espasmofílica. Mas teve medo, ou a coisa não era assim tão científica, porque recuou para uma postura menos interessada e disse-me que tinha que ver o nervo óptico e outras coisas que não percebi na altura.

(continua)

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por Cecília

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