14 abril 2004

Um sonho de Margarida

Margarida então sonhou que ia a bordo de um grande paquete, como os que a agência Glória espalhava em cartazes por todas as aldeias do Faial e do Pico. Mas não ia para a América, nem para Londres, nem para nada...nem o vapor era mais que um grande porão cavernoso e cheio de breu. Não havia primeira classe, nem camarotes nem mesa alguma, parecendo um milagre ou uma toca aquele piano invisível em que atropelavam Gorecki. O primo Luís Moreira, que a acompanhara a bordo, prometera apresentá-la ao comandante; ela agarrara-se-lhe às abas do casaco, e assim percorriam os decks empilhados de caixas e de sacos, como nas brincadeiras em que uma roda estúrdia cerca o Senhor Ladrão e se põe a dar voltas até chegar à cozinha. O tio Bonirre devia embarcar também; mas que era dele? Um preto vestido de ganga sacudia uma grande campainha. Depois um rolo de fumo empestava o paquete; um brutamontes holandês de barba por fazer puxava na ponte o arame da válvula da caldeira: três tombos tristes, como o veleiro Acédia saindo a Doca.
Margarida perdera-se atrás de uma pilha de fardos. Queria gritar e não podia. Uma gaivota veio e levou-lhe um bocado de cabelo. Tropeçou noutros fardos: D&G. Foi então que uma mulher, soltando-se de um molho de cabos, se pôs a olhar para ela com olhos de compaixão e um Trench-coat que adejava entreaberto, como uma andorinha ao vento: “Fuja! Fuja! Olhe esses ratos!” ”Quem é você? Para onde vai isto?” ” O meu nome é Vanessa! Vimos da Berlenga...”
Então, agarrando-se ao cinto do T-coat de Vanessa e seguindo-a por um corredor sem fim, que cheirava a corda e a azedo, Margarida pôde esconder-se numa espécie de cela a bombordo, com um i POD, uma lamparina de cápsula e um pronto-socorro no chão. Vanessa obrigara-a a sentar-se e contava-lhe uma história misteriosa que tão depressa falava de Luís no meio dos pestosos de Tunes, como num rapaz sem pai nem mãe que estava para casar quando ela desapareceu.

adaptado de Mau Tempo no Canal (Vitorino Nemésio)

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