06 abril 2004

Eu, se escrevesse

Para quem se escreve? Giordano Bruno, numa época da sua vida escreveu com entusiasmo para a rainha Elisabeth. Ela não o percebeu, teve medo dele e dos seus excessos. Achou-o ”rude”, com convicções demasiado fortes, perigoso. Aquilo a que hoje se chamaria “um radical”. Salvatore Gandio escreveu para os seus carcereiros. O infeliz acusado da Coluna Infame escreveu para um futuro que não conhecia com o objectivo preciso de ver reparada a injustiça que sobre ele se abatia. O meu avô escrevia para um leitor que havia de vir, e que talvez o lesse em esperanto, e vivesse num mundo sem governos nem mestres. Embora não se perceba, Rilke escreveu sempre para a Princesa Maria von Thurner und Taxis e ela só percebia a ferida lírica que lhe rasgava a testa. Thomas Mann escreveu por vezes para os rapazitos viris que lhe atormentaram a existência e seguramente nunca o leram. Dickens escrevia para as filhas e aquele homem esquisito para as sobrinhas. Milhões de mulheres escreveram as cartas de Soror Mariana , às escondidas de maridos sórdidos e de crianças curiosas, e todas escreveram para cavaleiros improváveis. A jovem princesa de Navarra entretinha os delicados admiradores com as suas histórias esperando que isso lhes trouxesse algum consolo. Maria do Rosário escreve incompreensivelmente para José A. Furtado.
Um dia, na modernidade, inventou-se essa farsa do leitor que reescreve o texto. E agora, na blogosfera, com a escrita assim tão democratizada e janelas de comments à disposição (onde as há), pode ser que essa ilusão se fortifique.
Mas os que escrevem fazem-no sempre para um leitor que não há. Essa é a definitiva limitação do leitor real. Isto, que sei há tanto tempo, não me entristece. Embora deixe o Bonirre desolado.

*sobre o mesmo tema ver my life is not my life e eternuridade

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