18 janeiro 2004

Caminhando nas praias do Ordovício

Caminhamos na serra, rente aos afloramentos de quartzitos da cumeada. De vez em quando a nuvem aperta-se em torno do pequeno grupo e ouvimo-nos mais do que nos vemos. O geólogo convoca-nos para junto de um morro. Pelo tom de voz, a pausa enfática e a hora do dia todos percebemos que se trata de uma revelação com alguma importância. À nossa altura, no paredão que escalamos, há uma linha ondulada que separa uma zona em tudo semelhante aos terrenos que vimos percorrendo e outros, dispostos em sucessivas faixas onduladas. É para essa linha que o geólogo aponta: Esta é uma demarcação entre dois tempos muito antigos e muito separados entre si. Temos vindo a pisar sedimentos ordovícios. Ora o que veem, por cima dessa fina linha de separação, são rochas do fim do Câmbrico. Quase cem milhões de anos as separa . Olhamos em silêncio esse interstício de tempo. Depois tocamo-lo, com as pontas dos dedos, como às fendas do Muro. Quando recomeçamos a marcha sabemos que caminhamos nas praias ordovícias, sobre os restos de artrópodes que nenhum antepassado nosso conheceu. O resto do percurso é feito em silêncio. De vez em quando um vulto recorta-se na luz do nevoeiro como um personagem de Tarkovsky. O carrasco preenche as cicatrizes da terra ardida.

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