22 outubro 2003

Caligrafia em Pedra

cALIGRAFIA EM PEDRA (I)
...
ilhas caligráficas
cercadas
por um mar
sem marés,

...
Mapa, Carlos de Oliveira

Um céu cobalto opalescente de água sobrevoa um mar convexo e, depois, durante o looping, o contrário e o contrário do contrário, ao ritmo do voltear planado de uma espiral acrobática que se contorce e lenta se espraia.
Suspenso deste mar de céu, uma colina invertida, um cone pendurado pela base, líquenes que escorrem atados a um vértice pardo.
Uma linha pontilhada a branco espuma, recorte finíssimo, faz a fronteira entre as mil gradações do verde cónico e os infinitos azuis planos.
Mais uma cor ainda, uma gota púrpura, do lado de dentro do musgo. Uma última cor, um ponto a negro, por enquanto imóvel, ‘sobre o lado esquerdo, a metade mais gasta’ dessa mancha de sangue que o vento esmaga.

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cALIGRAFIA EM PEDRA (II)
...
e segues
nesse passo
que mal pisa
o silêncio,
...
Rasto, Carlos de Oliveira

Este ponto a negro, fixo, é o risco de um homem, que se põe em marcha, desenha um salto e some-se por uma fresta onde o musgo é mais sombrio. Desaparece ou guarda-se invisível até reaparecer mais tarde, mais acima e mais perto. É André Bonirre, cego de luz ao romper do fundo. Recomeça a escalada em esforço, rumo ao vértice, o cume. Aí chegado, recolhe-se em êxtase, os olhos marejados, se os víssemos, repousam contemplativos perdendo-se nos céus marinhos. Num sobressalto, fixa o céu, leva as mãos abertas à boca que se abre e eu ouço um grito, uma palavra trovejada, e lanço também o meu grito de caçador e os dois ecos propagam-se entrelaçados e distantes desfazem-se já um som único.

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cALIGRAFIA EM PEDRA (III)
...
numa caligrafia
de letras
vagueando,

...
Estalactite, Carlos de Oliveira

... os factos narrados são verdadeiros, talvez com imprecisões menores. A mancha rubra será em rigor um rectângulo e talvez seja ocre se essa for a cor do telhado da casa do Museu do Vulcão dos Capelinhos. A entrada do poço existe, colada às paredes em pedra nua. O poço é de facto um túnel, arbóreo, opaco, muito íngreme. Manteve-se invisível, porque indescritível, esta parte do trajecto em pura espeleologia vegetal. Autêntico foi o êxtase contemplativo de André, mas não se disse do espanto da descoberta – o cume é um ninho gigante, uma minúscula cratera ladrilhada. O primeiro grito é real e é expelido quando ele avista, sobre a lama gretada, numa caligrafia de letras vagueando, um poema universal, escrito pedra a pedra - L I B E R D A D E.. depois, o açor elevou-se mais alto até ser um ponto indistinguível.

Estes os factos vividos por André Bonirre nesta micropaisagem entre duas memórias naquela busca ao meio dos oceanos gorada não inteiramente – aí estão vestígios, versos soltos de Ana Paula Inácio – pedras, margas, basalto, xisto.. no lado incerto onde bate o vento.. à espera que o tempo faça o resto.. fechada em código toda a escrita.. até se dissolver em pó.

André Bonirre

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