12 agosto 2003

Escrever de novo

Enrique Vila-Matas escrevera sobre a síndrome de Bartleby, situação que cala, por vezes definitivamente, os escritores. Aprendemos agora que foi o seu filho, Miguel de Abriles Montano, aliás Montano, quem escreveu Bartleby e companhia. Montano, que vive agora em Nantes, onde gere uma pequena livraria, foi, também ele, acometido dessa maldição. Depois de Bartleby deixou de publicar e, provavelmente, de escrever. O narrador Vila-Mateano, chamemos-lhe assim para facilitar, visita Montano para se curar de uma doença que nele assume características trágicas. Tal como o filho ele não pode escrever por ter o cérebro, ou o que resta dele, ocupado por imagens literárias. Ou, como diz Montano, recordar com a memória de outro. No fabuloso encontro com que termina a primeira parte deste livro, pois é de um livro que vos falo, o narrador encontra, num bar cujo nome vos revelarei em breve, um homem sem face que pode ser ele mesmo ou o escritor Ricardo Piglia ( autor, entre outros, de Nombre Falso, Respiración Artificial, Formas Breves). O encontro tem as características de um sonho mas o diálogo é de uma enorme lucidez, como só alguns sonhos permitem. “Recordar com a memória de um estranho, é uma variante do tema do duplo, mas é também uma metáfora perfeita da expressão literária.”-sussurra Piglia ao ouvido do narrador. No final desta conversa o escritor acorda e, vendo ao fundo o Canal do Pico e as águas azuis na proa de uma embarcação, tão nítidas que podia distinguir a espuma, percebe que está curado.
Sim, são os Açores as ilhas onde o narrador Vila-Mateano sofreu os horrores do fim da literatura e finalmente se reencontrou e é no Café Sport que este sonho tem lugar.

Nos Açores André Bonirre procurou, a meu pedido, uma mulher que depois de escrever um livro de contos que intitulou “Os invisíveis”, deixou de publicar. Eu sabia que “ Mulher à porta de sua casa” fora escrito numa ilha cujo nome não revelarei. Acreditava ser capaz de reconhecer aquela “vila redonda que se fechava, em concha, sobre o centro, traseiras viradas ao mar.” O meu amigo Teixeira, autor de uma novela chamada “O Rasto”, esperou André no aeroporto e acompanhou-o nesses dias. A viagem não teve qualquer êxito. O Teixeira deixou de beber, frequenta as famílias, tem casamento marcado e perdeu a piada. Quando André lhe falou de “O Rasto” sorriu-lhe como a uma assombração inofensiva. Nenhum dos seus conhecidos ouvira falar da autora de “Vinhas de Meu Pai”. Seria uma professora do continente? Uma funcionária do Governo? Uma juíza, ou delegada? Um amigo comum que agora ocupa nas ilhas um elevado cargo podia ser uma ajuda preciosa. Mas depois de um fim-de-tarde de ameno convívio no palacete colonial que ele ocupa, faltou a André a coragem para ser mais preciso na indagação e escondeu os verdadeiros motivos da sua visita.
Na mochila, levava El mal de Montano.
Montano cura-se quando põe a falar entre si as memórias literárias que o habitam e em “siete escassas pero intensas cuartillas” concentra toda a história da literatura. Antes do narrador eu percebera a outra maneira de vencer a doença de Montano. E era isso que queria mandar dizer à agráfica que André não chegou a encontrar: deixamos de escrever- como ela sabe, porque nada parece restar depois do nosso corpo cair, e numa suspensão do tempo, encontrar “o cheiro mais intenso da terra, o cheiro a cogumelos, escondidos, nessa altura, nos lugares mais secretos das matas.” Mas esse não é um lugar de chegada. Um dia a realidade estará de novo à nossa frente, cheia de cor, espessa e transparente. E mesmo que a estejamos a ver pelos olhos e pelo cérebro de Hamlet devemos celebrá-la, por exemplo da saudável maneira orgânica com que o narrador Vila-Mateano o fez. Porque nessa altura podemos de novo escrever.

Enrique Vila-Matas, El mal de Montano, ed. Anagrama, narrativas hispánicas, Barcelona 2002. 306 pp. 16 E

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